Artigo de José Monserrat Filho para o Nossa Ciência
“… visualizo em nossos dias um grande esforço, por parte da doutrina jurídica mais lúcida, de retorno às origens, que corresponde a um processo histórico de humanização do Direito Internacional.” Antônio Augusto Cançado Trindade (1)
O termo “humanidade” mereceu posição de realce no Tratado do Espaço de 1967, a lei maior do espaço e das atividades espaciais, cujo longo nome oficial – “Tratado sobre Princípios Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Cósmico, Inclusive a Lua e Demais Corpos Celestes” (2), foi-lhe dado certamente para explicitar seus objetivos mais gerais.
O Tratado do Espaço menciona quatro vezes a humanidade. É uma de suas distinções, com especial significado jurídico. Será a humanidade sujeito do Direito Espacial Internacional? O tema ganhou atualidade com a intensificação da globalização econômica, que supostamente viria satisfazer necessidades e anseios de todos os povos, mas que, na verdade, está cada vez mais distante desse objetivo, sem nunca “fortalecer as vozes do Terceiro Mundo”. (3) Qual poderia ser o papel da humanidade – vasta e majoritária, mas impotente e descartada – na governança do mundo?
Ou terá sido por vivermos na “Era Planetária”, na definição holista e esperançosa de Edgar Morin? Para Morin e Kern, em Terra-Pátria, “a era planetária se inaugura e se desenvolve na e através da violência, da destruição, da escravidão, da exploração feroz das Américas e da África. É a idade de ferro planetária, na qual estamos ainda”, mas “é também a aspiração, neste início do século XXI, à unidade pacífica e fraterna da humanidade”. (4)
O preâmbulo do Tratado do Espaço, já em seus primeiros considerandos inspira-se “nas vastas perspectivas que a descoberta do espaço cósmico pelo homem oferece à humanidade” e reconhece “o interesse que apresenta para toda a humanidade o programa da exploração e uso do espaço cósmico para fins pacíficos”. São enfoques que se completam dialeticamente: de um lado, o espaço descoberto pelos humanos escancara imenso potencial de benefícios para a humanidade; de outro, a humanidade tem tudo para se interessar pela exploração e uso pacífico do espaço.
O artigo 1º (§ 1ª) do Tratado estabelece a “Cláusula do Bem Comum”, determinando que “a exploração e o uso do espaço cósmico, inclusive da Lua e demais corpos celestes, deverão ter em mira o bem e interesse de todos os países, qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento econômico e científico, e são incumbência de toda a humanidade”. Ou seja, é tarefa, encargo, compromisso, dever, obrigação e responsabilidade (sinônimos de incumbência) da humanidade fazer com que a exploração e o uso do espaço sejam sempre realizados para o bem e no interesse de todos os países, independentemente de seu nível de avanço econômico e científico. A humanidade seria, então, o promotor e o fiador do bem comum nas atividades espaciais.
O artigo 5º do Tratado considera os astronautas como “enviados da humanidade no espaço cósmico”, título que também se aplica aos cosmonautas da ex-União Soviética e da Rússia, bem como aos taikonautas da China. A norma parece homenagem, mas, na realidade, tem um sentido prático e necessário, em plena guerra fria dos anos 60 em diante: cria a obrigação de prestar toda assistência possível aos astronautas em caso de acidente, perigo ou aterrissagem forçada em outro país que não o seu ou em alto-mar, e de retorná-lo a seu país de origem junto com seu veículo espacial, o mais rapidamente possível e em total segurança. Cria também mais duas obrigações: a de que os astronautas de um país prestem toda assistência possível aos astronautas dos outros países e a de que cada país informe de imediato aos demais países e ao Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas qualquer fenômeno que tenha descoberto no espaço, na Lua e nos outros corpos celestes, capaz de constituir perigo à vida ou à saúde dos astronautas. Note-se que os astronautas eram e muitos ainda são militares integrados às estratégias das Forças Armadas de seus países.
O Acordo que Regula as Atividades dos Estados na Lua e em Outros Corpos Celestes, de 1979, conhecido como “Acordo da Lua”, integra o quinteto de tratados aprovados pelas Nações Unidas, embora tenha sido ratificado por apenas 16 países e assinado por outros quatro. (5)
Em seu Artigo 4º, o Acordo da Lua repetem o Artigo 1º (§ 1º) do Tratado do Espaço, afirmando que “a exploração e o uso da Lua são incumbência de toda a humanidade e se realizam em benefício e no interesse de todos os países, qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento econômico ou científico”.
Mas tem o mérito de adotar duas novas disposições, em termos irrecusáveis: “Especial atenção deve ser dada aos interesses das gerações presentes e futuras, bem como à necessidade de promover níveis de vida mais elevados e melhores condições de progresso e desenvolvimento econômico e social, em conformidade com a Carta da Organização das Nações Unidas”.
Preparado em grande parte pelos países em desenvolvimento ao longo dos anos 70 – década em que os chamados países não alinhados tiveram importante atuação no cenário internacional –, o Acordo da Lua estabelece o princípio da relavância intergeneracional e ressuscita o amplo compromisso social adotado pela Carta das Nações Unidas na promoção de “níveis de vida mais elevados e melhores condições de progresso e desenvolvimento econômico e social”.
O Acordo da Lua tem sua maior contribuição no Artigo 11, que começa estabelecendo, no § 1º, que “a Lua e seus recursos naturais são patrimônio comum da humanidade”. O § 2º reafirma e adapta o Artigo 2 do Tratado do Espaço: “A Lua não pode ser objeto de apropriação nacional por proclamação de soberania, por uso ou ocupação, nem por qualquer outro meio”. E o § 3º detalha esse princípio da não-apropriação: “A superfície e o subsolo da Lua, bem como partes da superfície ou do subsolo e seus recursos naturais, não podem ser propriedade de qualquer Estado, organização internacional intergovernamental ou não-governamental, organização nacional ou entidade não-governamental, ou de qualquer pessoa física. O estabelecimento na superfície ou no subsolo da Lua de pessoal, veículos, material, estações, instalações e equipamentos espaciais, inclusive obras vinculadas indissoluvelmente à sua superfície ou subsolo, não cria o direito de propriedade sobre sua superfície ou subsolo e suas partes. Estes dispositivos não devem prejudicar o regime internacional referido no § 5º deste Artigo.”
O § 5º propõe a criação de um regime internacional para ordenar a exploração dos recursos naturais da Lua: “Os Estados-Partes se comprometem (…) a estabelecer um regime internacional, inclusive os procedimentos adequados, para regulamentar a exploração dos recursos naturais da Lua, quando esta exploração estiver a ponto de se tornar possível”.
O § 6º reza que, para facilitar a criação do regime Internacional, os Estados-Partes devem informar ao Secretário-Geral da ONU, ao grande público e à comunidade científica internacional, da forma mais ampla e prática possível, “sobre todos os recursos naturais que eles possam descobrir na Lua”. É o princípio da transparência, para fomentar a cooperação no mais alto grau possível.
E o § 7º alinha os principais objetivos do regime internacional, frizando que pode haver outros. São eles, conforme o texto do Acordo:
“a) Assegurar o aproveitamento ordenado e seguro dos recursos naturais da Lua;
b) Assegurar a gestão racional destes recursos;
c) Ampliar as oportunidades de utilização destes recursos; e
d) Promover a participação equitativa de todos os Estados-Partes nos benefícios auferidos destes recursos, tendo especial consideração para os interesses e necessidades dos países em desenvolvimento, bem como para os esforços dos Estados que contribuíram, direta ou indiretamente, na exploração da Lua.”
Muito se tem debatido sobre o conceito de patrimônio comum da humanidade, contido no Acordo da Lua e na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 1982 (7). Isso é sempre positivo, claro. No caso, porém, o importante é que, sendo ou não universalmente aceito o princípio de patrimônio comum da humanidade, o espaço e os corpos celestes são res communis omnium – bem comum a todos –, que não pode de modo algum ser objeto de apropriação, e sua exploração e uso devem atender ao bem e ao interesse de todos os países, como incumbência de toda a humanidade – conforme rezam o Artigo 2º e o Artigo 1º (§ 1º) do Tratado do Espaço.
Por isso, a ideia de se criar um regime internacional para gerir racionalmente a explotação dos recursos naturais da Lua e dos demais corpos celestes, inclusive dos asteroides, bem como a de “promover a participação equitativa de todos os Estados-Partes nos benefícios auferidos destes recursos” é perfeitamente alinhada e coerente com a “Cláusula do Bem Comum”.
Baseadas na lei nacional dos EUA, sancionada em 25 de novembro de 2015 (8), conferindo o título de propriedade privada às empresas norte-americanas que extraírem recursos naturais (minerais) de corpos celestes, empresas desta e de outras potências espaciais mobilizam-se para justificar legalmente a nova situação, que modifica totalmente o marco jurídico internacional em vigor, fundado no Tratado do Espaço. Aparentemente, o embate se trava só no campo do Direito, mas o movimento é poderoso e avassalador, pois, segundo se informa, envolve interesses e negócios estimados em trilhões de dólares. (9)
O Acordo da Lua não pode ser ignorado nessa discussão histórica. Ele oferece uma solução mais que razoável. O que parece em jogo é o rumo das atividades espaciais neste século. Vamos priorizar o direito público humanizado e democrático ou o direito privado dominador, dentro do rigor neoliberal, que até hoje não deu certo em nenhum lugar do nosso planeta?
A humanidade ainda não é sujeito do Direito. Falta-lhe uma instituição para representá-la e falar em seu nome legitimamente. Mas ceio que ela já é a maior destinatária do Direito Internacional e também do Direito Espacial Internacional. Essa posição continuará crescendo na medida em que aumente a consciência dos países e povos sobre o caráter global dos problemas – paz, justiça social, saúde e educação, clima, aquecimento geral, meio ambiente etc. –, a interdependência e interconexão de todos os habitantes do planeta, e a necessidade de união, solidariedade e cooperação para enfrentá-los e solucioná-los de modo muito mais justo, eficiente e racional.
Desse ponto de vista, o debate sobre a explotação dos recursos espaciais é apenas um item importantíssimo do quadro geral em que vivemos, que pede nossa mais ativa participação.
Daí que urge uma ética do debate. Edgar Morin escreve a respeito: “A regra do debate é inerente às instituições filosófica, científica e democrática. A ética do debate vai mais longe ainda: exige a primazia da argumentação e a rejeição da anatematização. Longe de descartar a polêmica, ela a utiliza, mas rejeita todos os meios vis, todos os argumentos de autoridade, assim como quaisquer tipos de rejeições pelo desprezo, quaisquer insultos sobre as pessoas.” (10)
Em suma, não se pode tratar quem pensa diferente como se fosse um inimigo intolerável.
José Monserrat Filho é vice-presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA) e ex-Chefe da Assessoria Internacional do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e da Agência Espacial Brasileira (AEB). E-mail: <jose.monserrat.filho@gmail.com>.
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