Perguntando se a proposta de igualdade de gênero na previdência é adequada para o atual contexto brasileiro, as pesquisadoras afirmam que a fixação da idade mínima elevada penalizará a população mais carente e tende a agravar as desigualdades sociais, principalmente entre os idosos
No final do ano de 2016, o Presidente da República encaminhou ao Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição – PEC 287/2016 – que altera regras paramétricas da Previdência Social, tanto para o Regime Geral quanto para o Regime Próprio. Uma das principais alterações propostas é a igualdade de gênero nas regras previdenciárias, fixando os critérios cumulativos de idade mínima 65 anos e tempo de contribuição 25 anos, para ambos os sexos.
Pela legislação atual, o homem pode se aposentar pelo Regime Geral com 35 anos de contribuição ou aos 65 anos de idade e 15 anos de contribuição, ao passo que as mulheres devem comprovar 30 anos de contribuição ou 60 anos de idade e 15 anos de contribuição. Essa diferença no tempo de contribuição e na idade de aposentadoria foi proposta pela Carta das Mulheres aos Constituintes de 1987, que reuniu diversas solicitações para reduzir as desigualdades sociais vivenciadas pelas mulheres. Parte significativa dessas solicitações foi inserida na Constituição de 1988, que garantiu legalmente vários direitos às mulheres, incluindo o bônus de cinco anos a menos para concessão de aposentadorias.
Considerando que as mulheres atualmente se aposentam, em média, aos 54 anos e os homens aos 60 anos, ao impor a idade mínima de 65 anos, eles deverão trabalhar em média por mais cinco anos e elas por mais 11 anos. A pergunta que surge é: a proposta de igualdade de gênero na previdência é adequada para o atual contexto brasileiro?
Na proposta do governo constam as seguintes justificativas para a igualdade de gênero nas regras previdenciárias: a maior expectativa de vida das mulheres ao nascer, a redução das diferenças salariais entre os gêneros, a redução do tempo dedicado aos afazeres domésticos pelas mulheres e a maior proteção trabalhista e social alcançada pelas mulheres com sua inserção no mercado de trabalho. Além disso, por meio de uma análise comparativa internacional, argumentam que o padrão europeu é adotar uma igualdade ou uma aproximação do tratamento de gênero nos sistemas previdenciários.
Em relação à expectativa de vida ao nascer, de fato, a da mulher é cerca de sete anos superior à do homem. No entanto, a análise não deve ser pautada na expectativa de vida ao nascer, que representa o tempo médio a ser vivido a partir do nascimento, e sim a partir da idade mínima de aposentadoria, que corresponde ao tempo médio de gozo do benefício previdenciário. Para o Brasil, atualmente, essa diferença aos 65 anos é de 3,1 anos, de acordo com a tábua de mortalidade do IBGE para 2015. Além disso, é preciso observar que existem diferenças significativas nos níveis de mortalidade entre as regiões brasileiras e entre classes sociais, resultando em expectativas de vida distintas. Consequentemente a fixação da idade mínima elevada penalizará a população mais carente e tende a agravar as desigualdades sociais, principalmente entre os idosos.
As diferenças salariais no mercado de trabalho ainda permanecem e a redução tem ocorrido de forma lenta. Em 2014, de acordo com o IBGE, as mulheres recebiam em média 81% do rendimento dos homens. Conforme a PEC 287/2016 aponta, em 19 anos a diferença proporcional dos salários de homens e mulheres reduziu apenas 15,5 pontos percentuais, ou seja, menos de um ponto percentual por ano. Assim, de uma forma prospectiva, faltariam quase 23 anos para as mulheres alcançarem a garantia constitucional da igualdade salarial. Essa desigualdade é consequência de dois fatores: em várias ocupações os salários femininos são menores, mesmo quando as mulheres apresentam qualificação idêntica à dos homens, e parte significativa das mulheres assume trabalhos mais precários, geralmente ligados à prestação de serviços (trabalho doméstico, serviço social, saúde e alimentação) os quais tem baixa remuneração e/ou são informais. Muitas mulheres optam por trabalhos informais, com baixa remuneração, para ter uma jornada de trabalho mais flexível, que as permitam assumir as demandas familiares, como o cuidado com filhos e idosos.
A sobrecarga da dupla jornada ainda é uma realidade na vida das mulheres brasileiras. De acordo com o IBGE, entre 2004 e 2014, o tempo de dedicação da mulher aos afazeres domésticos passou de 22,3 horas semanais para 20,5 horas semanais, ao passo que para os homens se manteve em 10 horas semanais, correspondendo à metade do tempo de trabalho feminino dedicado ao lar. O argumento presente na PEC 287/2016 de que “os novos rearranjos familiares, com poucos filhos ou sem filhos, estão permitindo que a mulher se dedique mais ao mercado de trabalho, melhorando a sua estrutura salarial” desconsidera que a mulher se dedica, em média, o dobro do tempo do homem, fato que evidencia o papel da mulher na sociedade brasileira como cuidadora da família e do lar. Além disso, a proposta do governo não menciona que nos novos rearranjos familiares há o aumento da permanência dos filhos na casa dos pais e as novas demandas impostas pelos idosos, que mesmo não residindo no mesmo domicílio dos filhos, também necessitam de cuidados, em geral assumidos pelas mulheres.
A busca de referências internacionais para adotar como padrão no país, entre elas a igualdade de gênero, é plausível, já que constitui um dos objetivos fundamentais da República previsto na Constituição Federal de 1988. No entanto, em um contexto previdenciário, os países que apresentam essa igualdade de regras, em sua maioria, são Estados com um maior desenvolvimento e que possuem políticas direcionadas a igualdade de gênero há muito tempo. A Suécia, a Finlândia, a Islândia, a Noruega e a Dinamarca são os países nórdicos da Europa com maior igualdade de gênero, de acordo com o Relatório das Diferenças de Gênero, divulgado pelo Fórum Econômico Mundial em 2014. O Brasil está longe de alcançar uma igualdade de gênero vivenciada pela Suécia, por exemplo, onde há uma organização pública voltada para a introdução de regras trabalhistas que facilitam a conciliação entre o trabalho com a educação dos filhos e a participação no mercado de trabalho. Infelizmente essa não é a realidade brasileira, portanto tal conjuntura não pode ser descartada pelo governo ao adotar novas regras de aposentadoria, pois muito do que se viveu (tempo de serviço, intervalos entre trabalho e maternidade, valor das remunerações, carga do trabalho) repercutirá na aposentadoria programável.
Ao se impor condições tão penosas para o acesso à aposentadoria programável, corre-se o risco de gerar uma insegurança grande na população, desestimulando não só a formalização do trabalho, mas também a fecundidade. A redução de filhos por mulher pode se intensificar num contexto de redução da proteção previdenciária em conjunto com a escassez de serviços gratuitos que permitam uma maior permanência da mulher no mercado de trabalho. Uma menor fecundidade compromete consideravelmente o sistema de financiamento do RGPS, uma vez que reduz cada vez mais a quantidade de ativos na população e aumenta o peso proporcional das pessoas em idades mais avançadas.
Embora as justificativas apresentadas pelo governo evidenciem que a desigualdade de gênero no mercado de trabalho e nos afazeres domésticos reduziram com o tempo, elas também demonstram que essas desigualdades ainda são muito presentes na sociedade brasileira. O texto da proposta apresenta a seguinte afirmação “…observando-se uma regra de transição mais gradual para as mulheres…”. Se a transição deve ser gradual, porque impor o mesmo tempo de contribuição e idade mínima para homens e mulheres de imediato, sem conceder nenhum tipo de bônus? Diante desse contexto, o ideal é propor uma evolução paulatina da diferença entre os gêneros na previdência, em consonância com o histórico de melhorias desses diferenciais na sociedade brasileira.
Luana Junqueira Dias Myrrha – Atuária, Doutora e Mestre em Demografia, Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Anna Carolina Ianino Lima Andrade – Advogada, pós-graduada em Direitos Públicos e mestre em Demografia.
Pamila Cristina Lima Siviero – Atuária, Doutora e Mestre em Demografia, Professora da Universidade Federal de Alfenas.
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