Conhecido case da Pontiac mostra como o entendimento dos conceitos pode fazer a diferença entre sucesso e fracasso de um empreendimento
A história (ou lenda) começa quando o gerente da divisão de carros Pontiac recebe a seguinte carta:
“Esta é a segunda vez que mando uma carta para vocês e não os culpo por não me responder. Eu posso parecer louco, mas o fato é que nós temos uma tradição em nossa família, que é a de tomar sorvete depois do jantar. Repetimos este hábito todas as noites, variando apenas o tipo de sorvete, e eu sou o encarregado de ir comprá-lo. Recentemente, comprei um novo Pontiac, e desde então minhas idas à sorveteria se transformaram num problema. Sempre que eu compro sorvete de baunilha, quando volto da sorveteria para casa, o carro não funciona. Se comprar qualquer outro tipo de sorvete, o carro funciona normalmente. Os senhores devem achar que eu estou realmente louco, mas não importa o quão tola possa parecer a minha reclamação, o fato é que estou muito irritado com o meu Pontiac modelo 99.”
Verdade ou conto, e de final surpreendente, este texto roda a Web como um case que retrata a jornada do cliente, de como não se deve desprezar simples ou estapafúrdias sinalizações, pois existe uma moradora latente associada a qualquer P2S2 (processo, produto, serviço, startup), que indica quão bem ou mal vai um negócio e por isso é um de seus principais KPI (indicadores-chave): a reclamação. Para que seja autêntica e sirva de indicador, é imprescindível detectar se a associação P2S2-reclamação trata-se de uma correlação ou de uma causalidade, assunto iniciado em Não inove. Apenas experimente!, fato que chamou a atenção dos leitores. Por isso, a aula condensada de hoje é uma expansão deste tema, utilizando por mote o Pontiac e a baunilha, cujo entendimento dos conceitos pode fazer a diferença entre sucesso e fracasso de um empreendimento.
Causalidade x Correlação
Não é necessário mergulhar fundo em conceitos, pois não desejo promover uma viagem matemática cansativa. Entretanto, precisamos dominar os simples, para que possamos aplicá-los aos negócios. Da Wikipedia, coleto então:
Causalidade. “Relação entre um evento A (a causa) e um segundo evento B (o efeito), provido que o segundo evento seja uma consequência do primeiro. Identifica-se logicamente a causalidade em “se não A, então não B”, provida a ocorrência empírica de ao menos um B. A expressão anterior não equivale a rigor à expressão “se A, então B”, sendo, contudo, esta e não aquela a usualmente atrelada em senso comum ao conceito de causalidade”.
Correlação. (…) “Dependência ou associação, é qualquer relação estatística (causal ou não causal) entre duas variáveis. É qualquer relação dentro de uma ampla classe de relações estatísticas que envolva dependência entre duas variáveis. (…) Embora seja comumente denotada como a medida de relação entre duas variáveis aleatórias, correlação não implica causalidade. Em alguns casos, correlação não identifica dependência entre as variáveis”.
Trocando em miúdos, a correlação sugere uma forte associação estatística. Causalidade, também chamada de causa-efeito, implica em determinação, inteligibilidade, saber de fato como modelar o que se está recebendo e chegar às suas causas. E uma coisa interessante: embora o senso comum nos leve a acreditar que causal é quando uma coisa leva à outra, o conceito lógico formal pauta o contrário, que quando algo faltou é porque sua causa não aconteceu. Agora sim, pode-se entender o “miolo” da reclamação e aprimorar-se a proposta de valor do negócio.
A ebulição da água e outros “causos”
A necessidade de expansão de um conceito já conversado, partiu de dúvidas levantadas recentemente por alunos em nossa sala de aula remota (e por leitores). Se a galera que está estudando isso tem questões, imaginem quem não está acostumado com os conceitos, ainda mais aplicados aos negócios? Trazendo esse “blábláblá” para a realidade, veja um exemplo simples acontecido na última aula, em que conversávamos sobre causalidade e correlação.
Ebulição. Questão: Se colocarmos água em uma chaleira e esta na boca acesa de um fogão, depois de um certo tempo a 100ºC, a água entrará em ebulição. O que se dá entre a temperatura atingida pela água e sua ebulição é uma causalidade ou correlação? Em princípio, achava ser uma questão simples. Entretanto, sendo feita a quase 400 estudantes e tido como resposta uma quase unânime “causalidade”, percebi que tratar-se de uma pergunta “de torar”. Refiz então de outra forma: “A temperatura é a única grandeza capaz de levar a água à ebulição?”. A ficha caiu. Disseram que não. Pode-se promover a ebulição da água, por exemplo, aumentando-se o volume que a contém (experimente colocar um pouco de água em uma seringa, tapar a saída, e puxar o êmbolo) ou por redução da pressão externa. Ferver a água em uma pressão maior do que a natural exigiria maior temperatura. Portanto, há uma forte associação, ou correlação, entre temperatura e ebulição, mas não necessariamente uma relação de causa-efeito. Q.E.D, ou “como se queria demonstrar”.
Afogamento e sorvete. O livro “A cultura da experimentação” traz uma nota que demonstra que “o consumo de sorvete se correlaciona com o número de incidentes de afogamento”. Não deixe de tomar sorvete nem seja mórbido o suficiente a ponto de sair procurando praias onde isso acontece com frequência, para levar seu carrinho de sorvetes ou vender boias.
Expectativa de vida. Os pesquisadores Nayak e Ketteringham, no livro “The Human Side of Managing Technology Innovation” (Oxford University Press, 1997), mostram que o tamanho da palma das mãos de uma pessoa se correlaciona com a expectativa de vida. Quanto menor, maior a longevidade. Não recomendo se submeter a uma cirurgia de redução das palmas.
Métricas pirata e de vaidade
Sobre o afogamento e o consumo de sorvete, o verão (causa) manda mais pessoas para as praias (efeito), refletindo nos aumentos do consumo de sorvetes e incidentes na água. A expectativa de vida levou em conta a palma das mãos das mulheres, que vivem mais do que os homens. Para que uma relação de causalidade exista, é necessário buscar por um modelo ou equação explícita entre a causa e o(s) efeito(s). No caso da ebulição da água, quem determina a causalidade é a lei dos gases ideais (PV=nRT), não apenas a temperatura.
Nos negócios, sugiro uma estratégia ancorada nas métricas pirata (AAARRR): Consciência, Aquisição, Ativação, Receita, Retenção e Referência, cuja a operacionalização (tática) deve considerar métricas reais: qualitativas x quantitativas; de vaidade x acionáveis (se sentir bem x fazer bem a coisa); exploratórias x reportação (especulativas x factuais); guia x atraso (antecipar x ficar contemplando um passado glorioso); correlacionadas x casuais (as coisas mudam simultaneamente x uma coisa controla a outra), tudo isso feito antes de se pensar em qualquer solução. 50 milhões de likes para uma grande ideia pode demonstrar uma considerável correlação com a proposta de valor de seu P2S2. E pode significar somente isto! Buscar por um modelo, uma equação, um algoritmo baseado na estratégia e tática citadas acima, levará seu modelo de negócio a entender a causa das reclamações e o que ele deve, de fato, resolver. Aí pode-se pensar em prototipar algo, desenvolver-se um modelo de ideia ou de negócio, refazer ou reprototipar o que não está tão bom.
Pontiac e a intolerância a baunilha: continuando…
“A carta gerou tantas piadas do pessoal da Pontiac que o presidente da empresa acabou recebendo uma cópia da reclamação. Ele resolveu levar o assunto a sério e mandou um engenheiro conversar com o autor da carta. O funcionário e o reclamante, um senhor bem sucedido na vida e dono de vários carros, foram juntos à sorveteria no fatídico Pontiac. O engenheiro sugeriu sabor baunilha, para testar a reclamação, e o carro efetivamente não funcionou. O funcionário da General Motors voltou nos dias seguintes, à mesma hora, fez o mesmo trajeto, no mesmo carro, e só variou o sabor do sorvete. Mais uma vez, o carro só não pegava na volta quando o sabor escolhido era baunilha. O problema acabou virando uma obsessão para o engenheiro, que passou a fazer experiências diárias anotando todos os detalhes possíveis e, depois de 2 semanas, chegou à primeira grande descoberta. Quando escolhia baunilha, o comprador gastava menos tempo, já que este tipo de sorvete estava bem na frente. Examinando o carro, o engenheiro fez nova descoberta: Como o tempo de compra era muito mais reduzido no caso da baunilha, em comparação com o tempo dos outros sabores, o motor não chegava a esfriar. Com isso os vapores de combustível não se dissipavam, impedindo que a nova partida fosse instantânea”.
Finalizando…
Longe de mim a intenção de criar um tratado de marketing. A ideia é fazer você questionar se a proposta oferecida está atingindo a causa de fato, não algo adjacente. Se um experimento tão simples, com poucas e objetivas variáveis envolvidas, como o da ebulição da água, mostrou-se dúbio, imagine um experimento muito mais complexo, em um laboratório mais amplo, com infinitas e subjetivas variáveis, chamado Mercado? Não dá para acreditar apenas em associações, mas pode-se começar por elas. Pois, assim como os meridianos da Terra apontam para o Norte, fatos correlacionados apontam para uma única fonte, a causa. Busque sempre pela raiz das coisas; pela causalidade. Não caia no conto da correlação.
Referência:
(https://administradores.com.br/artigos/o-cliente-sempre-tem-razao-o-conto-do-sorvete-de-baunilha)
A coluna Empreendedorismo Inovador é atualizada às quartas-feiras. Gostou da coluna? Do assunto? Quer sugerir algum tema? Queremos saber sua opinião. Estamos no Facebook (nossaciencia), Twitter (nossaciencia), Instagram (nossaciencia) e temos email (redacao@nossaciencia.com.br). Use a hashtag #EmpreendedorismoInovador.
Leia a edição anterior: Transformação analógica
Gláucio Brandão é Pesquisador em Extensão Inovadora do CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
Gláucio Brandão
Deixe um comentário