Alimentar o corpo, depois a alma.
Por Joana Marcedes
Estes dias estive na cidade de São Paulo, fui visitar a 34ª Bienal. Pude sentir, de perto, o céu cinza que tanto ouvia falar e não teria prestado a atenção na última viagem que havia feito a cidade, pois foi corrida e de passagem. Percebi, desta última ida, que o céu não era a única matriz cinza, pois com os seus prédios gigantes, suas ruas largas e avenidas quilométricas, esse cinza se ramificava em outros cenários e encontrado nos “murmurinhos gritantes” que estão implícitos no perpassar de quem transita.
A cidade estratificada, na qual as pessoas não se cumprimentam ou se olham, como pedras que se movem, mas com lapidação quadrada. Nordestina como sou, não conseguia exprimir sentimento de pertencimento a tudo o que pude ver, pois a cidade me posicionava às margens. Notei um berro, que não se permite o ecoar, pois os prédios prendiam o choro dos que ali habitam, pois muito cedo entendi que dor, sem dó, dói.
Uma cidade feita para gigantes, uma cidade habitada por prédios monumentais, não se enxergando pessoas, pessoas comum, assim como eu, de passagem ou permanentes. Uma cidade projetada para a moradia das grandes construções e carros. Como olhar para os humanos que estavam em situação de rua, se os prédios te fazem olhar para cima? É como se formasse um peso e tudo que está por baixo sucumbi. A pressão provocada por um sistema econômico que não prioriza o outro, mas às coisas, o concreto, uma cultura hegemônica se forma no entender de toda a cidade, uma cultura que exclui e segrega, tornando tudo uma rocha inventada pelo outro, este outro que não tem nome, apenas número.
São Paulo é um lugar entendido como uma potência desmedida para o conhecimento, com espaços que permitem o acesso a tantas coisas importantes no que diz respeito a manifestação da sensibilidade do homem, sensibilidade e sapiência. Entretanto, espaço e conhecimento difundido por um grupo de pessoas que foram responsáveis por tantas atrocidades, como a exploração do território, escravização do negro que já tinha uma cultura e crença, bem como o extermínio da população indígena.
Todavia, há esta arte que nos salva, que nos movimenta a algo novo, que nos traz esperança e resistência. Porém, como ser insensível a tantas pessoas passando fome? Como ser insensível a tantas pessoas em situação de rua e dependência química sem a mínima assistência?
– Tornando o outro invisível e não pertencentes de si mesmo?
Quanto custa uma empresa multinacional? Quanto custa o “desenvolvimento” financeiro? Quanto custa a fome de quem tem fome? Quanto custa a invisibilidade e o silêncio dos que gritam?
Sabemos que a realidade da cidade de São Paulo é a realidade de várias outras cidades no Brasil, principalmente daquelas que se dizem grandes cidades, por seu “desenvolvimento” econômico e mercadológico. Contudo, torna-se absurdo o contraste social, em meio a tamanha arquitetura de prédios descomunal que caracterizam o “desenvolvimento” urbano, percebemos “condomínios” feitos de papelão e madeira, as barracas contradizendo tudo o que a cidade pode nos proporcionar de bom e moderno, é como se ainda estivéssemos no mais ultrapassado do desenvolvimento humano e ainda estamos, pois a fome é algo atrasado, primitivo e desumano.
O poema “O bicho”, escrito pelo poeta pernambucano, Manoel Bandeira (1886-1968), retrata os anos quarenta, no qual já se existia um abismo social, provocado pela desigualdade, o poema foi escrito no Rio de Janeiro, daí percebamos que é uma problemática nacional. Uma denúncia as diversas fraturas sociais que este país apresenta. A contradição do homem, em meio a sua arte e manifestação de vida. Será que precisamos de um poema para nos sensibilizarmos com a fome? Será que essa sensibilização não se apresenta como algo natural ou o Poema já não faz sentido algum? Será que esse sentido se perdeu, não por termos superado as desigualdades ou suprido a fome de tantos, mas por não nos sentirmos mais pertencentes ao outro ou o outro deixa de enxergado como parte de nós mesmos? Aonde nos perdemos ao ponto dessa fome não nos doer mais? Estamos dormentes, é como se o estímulo visual de ver alguém em uma situação degradante não nos incomodasse mais, não doesse mais, não fosse mais um estímulo por fazer parte de uma realidade permanente.
Segue o poema:
O Bicho, de Manuel Bandeira
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
Se a arte nos salva e nos faz refletir, compreendo que estamos em um projeto extremo de desumanidade, quando não temos muitas políticas sociais que proporcionem o acesso à arte, bem como as outras ramificações do conhecimento. Pois é arte que nos faz refletir o todo, através da sensibilidade, nos permitindo o encontro com a criação.
É triste perceber que o atual governo “cerra” os olhos para possibilitar uma qualidade de vida mínima a população subalternizada e que não possui um projeto para a transformar essa infeliz realidade. Mais triste é perceber que este mesmo governo é a representatividade de um povo, um povo que se diz “de bem”, um povo que retirou do poder a primeira mulher a se tornar presidente do país, é o mesmo povo que mesmo a exposição de várias contradições e ações ilícitas deste governo, permitirá que este continue a nos representar, a tomar as decisões até o fim do seu mandato. Estamos em uma imersão, na qual a única possibilidade é o afogamento das ideias e sonhos de um país possível, possível a se viver com o básico do mais básico a sobrevivência, a alimentação.
No final do mês de setembro, desde mesmo ano, uma mulher chamada Rosângela Sibele, 41 anos, foi presa por ter furtado dois pacotes de macarrão instantâneo, um refrigerante de 600ml mais um pacote de suco em pó, na cidade de São Paulo. Rosângela declarou que não queria ter furtado, mas que estaria com muita fome e precisava alimentar seus cinco filhos. Ainda expressou ter se arrependido e que chegou a devolver os produtos a vendedora, porém, ao avistar a viatura da polícia, movida por tremendo desespero, jogou as coisas e tentou fugir.
Infelizmente, Rosângela só foi liberada após três tentativas de habeas corpus. Sendo negado tanto na primeira como na segunda instância pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. O caso foi parar no Supremo Tribunal de Justiça, no qual foi concedida a liberdade.
Ocorreram fortes questionamentos sobre a permanência de Rosângela na prisão. O que me fez lembrar do princípio da bagatela ou princípio da insignificância, um princípio em que já fez parte de muitos estudos e é refletido, bem como explorado, na disciplina de direito penal, pelas faculdades de direito, fazendo uso da literatura, através de uma famosa obra, escrita pelo romancista Victor Hugo, publicado em 1862, “Os Miseráveis”. Mais uma vez a arte trazendo as dilacerações necessárias, separando o que é opressão e o que é humanidade. Essa humanidade que só pode passar pela sensibilidade.
Rosângela Sibele, está em situação de rua há dez anos e fala que tenta lutar contra a dependência química, exprimi: “meu grande sonho é ser gente”. Ou seja, há dez anos essa pessoa alega que vive em extrema vulnerabilidade. Seriam dez anos de invisibilidade?
Fico me perguntando quantos juízes impendem a existência da Rosângela Sibele e se há sensibilidade nessas pessoas ou se elas percebem pessoas em vulnerabilidade como gente. O país que mais mata pessoas negras e que mais oculta a morte de pessoas indígenas. Quanto custa um juiz? Quanto custa uma vida? Quanto custa uma existência digna. Os mesmos juízes que encarceram Rosângelas, encarceram os sonhos de muitos se perceberem como gente, como o que são. Somos iguais entre os iguais, este é o fundamento do direito positivo. A justiça, deste país, deveria, antes de exercer qualquer sanção sobre alguém, por qualquer delito que seja, verificar se essa pessoa possui acesso aos direitos mais básicos. Caso contrário, é injusto se cobrar o que não se foi proporcionado.
A Bienal, este ano, recebeu o título de “Faz escuro, mas eu canto”. Pois bem, deixo aqui o meu grito, meu choro, minha vontade de reconhecimento a todos aqueles que exclamam: “o meu grande sonho é ser gente”. Que possamos cantar, mesmo que seja no escuro, na percepção de outros sentidos que nos encaminhe a uma porta e que nesta porta possamos todos transitar como gente.
Joana Marcedes (Instagram: https://www.instagram.com/joanamercedes_/)
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“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom é um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.
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