Ressignificando territórios através da fotografia documental Diversidades

segunda-feira, 21 junho 2021
Montagem com fotos de Osani da Silva e Ahmed Mostafa.

Pesquisadoras do audiovisual colocam em paralelo os trabalhos de artistas de Acari (RN) e Quena, no Egito, e buscam provocar encurtamentos imagéticos da distância

Por Auana Câmara e Sabrina Campos*

Inicialmente produzida pelos europeus invasores, as gravuras e, posteriormente, a fotografia documental foi utilizada nos territórios colonizados como propaganda do olhar colonial que buscava, com essas imagens, validar as missões civilizatórias. Dessa forma, a fotografia colonial assume o papel de apresentar um recorte ficcional disfarçado de documento incontestável, convencendo, estereotipando e desindividualizando os sujeitos e territórios representados a partir da visão colonial. Pereira comenta que a fotografia fornece […] elementos subtis da construção mental que nutre o olhar e que, em última análise, transparece nas modalidades discursivas/visuais materializadas no clichê fotográfico¹. Ou seja, a fotografia colonial produzida torna-se base para a perpetuação desse olhar colonizado através do tempo.

  

Auana Cãma – Fonte: Labrojeira                             Sabrina Campos – Acervo pessoal

Em contrapartida ao clichê fotográfico, existe um movimento de fotógrafes dissidentes que buscam o deslocamento desse olhar nutrindo a reterritorialização por meio da fotografia. Neste ensaio iremos analisar paralelamente os trabalhos fotográficos da brasileira Tambureti e do egípcio أحمد مصطفى Ahmed Mostafa, e como os mesmos contribuem e dialogam entre si no processo de reterritorialização, trazendo um recorte sociocultural e político. Us fotógrafes subvertem a lógica do clichê fotográfico, reapropriando mundos e reterritorializando as expectativas e disposições sensíveis socialmente constituídas por meio de novas aferições de valor permitidas pela “conquista” fotográfica².                                        

Para discorrer essa análise, precisamos, primeiramente, apresentar e compreender o contexto histórico dos locais onde tais fotógrafes se encontram.

أحمد مصطفى Ahmed Mostafa foi iniciado em fotografia pelo amigo e proeminente fotógrafo documental محمود هواري Mahmoud Hawary, fundador do projeto Humans of Upper Egypt,que, em suas próprias palavras busca difundir os valores, cultura, costumes e tradições da sociedade do Alto Egito através da fotografia e de todos os meios e capacidades logísticas disponíveis, e aprofundar a comunicação entre os diferentes grupos da sociedade através da divulgação da cultura do olhar. Isso por acreditar que a imagem é uma das principais causas de mudança da sociedade e da defesa dos valores e princípios da humanidade. (هواري Hawary, 2018, tradução nossa)

مصطفى Mostafa é um dos colaboradores do projeto, e reside em Quena, uma província às margens do rio Nilo no Egito, país que foi colonizado no século XIX e vive hoje os processos sociopolíticos que a colonialidade instaura, entre ditaduras, revoltas e revoluções, em uma democracia recente e instável. Atualmente, us egípcies sofrem grande repressão e vigilância do governo, e a crise do Covid-19 intensificou os problemas socioeconômicos suportados por elus.

Já Osani da Silva, Tambureti, é uma artista visual seridoense nascida e criada em Acari, cidade localizada no interior do estado do Rio Grande do Norte. Segundo sua descrição para o Mídia Ninja, ela

[…] Vê na fotografia o poder de criar memórias e laços entre pessoas e lugares e acredita que antes de tudo a fotografia é também uma ferramenta política usando-a na luta por seus direitos e lugar de fala. Sua arte expressa o modo de vida e a cultura de um lugar em descoberta, sempre com olhar crítico, dando visibilidade a um povo que assim como a mesma sente na pele as consequências do sistema capitalista, patriarcal, racista, trazendo em seu trabalho histórias e vivências, com pautas nas relações decoloniais, discussões de gênero, raça e classe (Mídia Ninja, 2021).

Acari, por sua vez, é uma cidadezinha do interior, hoje muito marcada pelo catolicismo, já foi território da etnia Cariri. A partir disso, podemos inferir sua atual conjuntura.

[…] Acari tem mais sujeira do que gari. por aqui tudo é nas caladas. nas escondidas. vocês não sabem da missa a metade. nunca te contaram que o seridó foi erguido por cima do genocídio dos povos nativos. guerra dos bárbaros. e ainda depois de séculos são os filhos os netos dos que tomaram a terra do povo que ainda controlam o município. (O peso da Fome, Tambureti).

Aproximações possíveis entre narrativas

O território constitui fundação primordial da experiência vital dos seres. Segundo o geógrafo Milton Santos, o território é a base do trabalho, da residência, das trocas materiais e espirituais e da vida, sobre as quais ele influi. Com base nesse pensamento, utilizaremos das narrativas visuais criadas através do trabalho dos sujeitos analisados para explorar o uso da fotografia e suas técnicas para repensar perspectivas do passado e criar presentes contra-hegemônicos e futuros possíveis.

Pode-se questionar, no entanto, qual seria a proximidade entre tais indivíduos, de territórios longínquos, com culturas e vivências totalmente diferentes. A resposta é simples e já contextualizada durante esse ensaio: a decolonialidade e o olhar subversivo que a fotografia documental de ambes nos apresenta. Vejamos:

           

Captura de tela – pupá, 2019 (Tambureti)            Captura de tela – Elhussen streets, 2018 ( مصطفى )                                  

Suas vivências apresentam divergências materiais, como os níveis de urbanização dos territórios onde vivem e suas respectivas densidades demográficas – o Egito é o terceiro país mais populoso de África, enquanto Acari, por sua vez, é um município do Seridó com população estimada em cerca de 11 mil habitantes. É possível perceber como esse aspecto influi na produção das imagens: مصطفى Mostafa apresenta em suas fotografias tons terrosos e fechados que relacionam-se à intensa movimentação cotidiana em meio urbano, enquanto Tambureti nos traz cores limpas, primárias, ligadas à vida no interior sem grandes intervenções urbanas. Essas experiências, porém, dialogam entre si ao passo que, tanto fotógrafes, quanto fotografades, vivenciam existências subalternas.

                               

Captura de tela – acari é racista? (Tambureti)        Captura de tela – Sem título, 2010 ( مصطفى )

 Aqui, podemos aproximar as narrativas para além da composição estranhamente semelhante e familiar, através da escolha de ângulo frontal. Esse ângulo é o mais natural a nós, e apresenta-se potencializado na construção dessas imagens, pois atua integrando todos os participantes de tais processos. A hierarquia social é suprimida, o nível da linha de visão e postura dus fotografades transmite familiaridade. Complementando a produção, Tambureti apresenta o indivíduo Amarildo textualmente em uma abordagem habitual e sensível.

                     

Captura de tela – Natal Invisível – Cavaleiro negro       ورد الجمعة . 2020 (مصطفى ) 

que viveu mistérios, 2018 (Tambureti)                               

Embora as composições das fotografias acima sejam diferentes, tanto em relação ao ângulo, enquadramento, iluminação e balanços de branco, todos esses elementos serviram para dar o mesmo sentido às mesmas. Nessas fotografias pode-se perceber o uso das técnicas para proporcionar uma leitura: dois homens em seus hábitos cotidianos e espaços que dão a impressão de acúmulo e, de certa forma, abandono e comodidade. Além disso, os ângulos  – assimétrico, na fotografia Natal invisível, e central, na fotografia ورد الجمعة. – dão uma profundidade intensificada pela iluminação; ambas utilizam a regra dos terços e possuem harmonia de cores.

                         

Captura de tela – SALTO SOLTO, 2020 (Tambureti)        Captura de tela – Behind scene, 2019 (مصطفى

Nas imagens acima, ambes fotógrafes fazem uso das diagonais criadas visualmente pelos corpos, criando, assim, fotos dinâmicas com sensação de movimento. Os contornos das silhuetas das crianças são colocados em evidência, sobrepostos a um fundo difuso. A contra-luz torna predominantes os pretos dos primeiros planos, e enquanto em Behind scene o fundo traz diferentes variações tonais do cinza ao branco, e o preto-e-branco da fotografia realça seus contrastes, a luz do sol em SALTO SOLTO torna nítida a silhueta da criança, mas não sua forma. Também há grande contraste com o céu azul, e por causa da posição em movimento a criança parece prestes a voar, revelando a criatividade da composição e do uso dos tons coloridos.

                                            

Captura de tela – um sopro de brisa leve                                Captura de tela – Good morning from      

que te governe quem vai sou eu, 2020 (Tambureti)               Upper Egypt, 2020 ( مصطفى )    

Partindo dessa breve análise, percebemos que Tambureti e مصطفى Mostafa realizam a reterritorialização imagética das cidades² em suas práticas fotográficas, decolonizando as experiências coletivas e individuais nos territórios em que cresceram e ocupam. Isso se manifesta, mais uma vez, de forma evidente nas fotografias um sopro de brisa leve que te governe quem vai sou eu e Good morning from Upper Egypt. Buscamos, com essa construção, estabelecer paralelos entre vivências subalternizadas pela colonização através do mundo, extrapolando limites de fronteiras cartográficas e tornando possível aproximações entre as lutas dos povos. Torna-se evidente, também, em vários recortes do trabalho fotográfico de Tambureti e مصطفى Mostafa, a semelhança no uso das técnicas: ângulos, profundidade, iluminação, enquadramento e o uso de formas.

Quem reterritorializa o faz questionando territorializações hegemônicas², e Tambureti e مصطفى Mostafa mostram-nos que por mais distantes que algumas realidades nos pareçam, ao questionar o que nos é instituído, aproximamos-nos.

* Auana Câmara é integrante do Projeto de Extensão Mostra Monstra. Sabrina Campos é fotógrafa, participante do projeto de micro residência artística M.A.P.A do Margem Foto Hub de Fotografia e voluntária do Projeto Olhos Negros (UFRN).

Referências

A coluna Diversidades é quinzenal, publicada às segundas-feiras. Leia, opine, compartilhe e curta. Use a hashtag #Diversidades. Estamos no Facebook (nossaciencia), Twitter (nossaciencia), Instagram (nossaciencia) e temos email (redacao@nossaciencia.com.br).

Leia a coluna anterior: Desafios da comunidade LGBTI+ em tempo de pandemia de Covid-19

“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom é um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.

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