O racismo é uma problemática criada pela branquitude. Logo, brancos(as) devem se autorresponsabilizar e assumir seu lugar na transformação dessa estrutura
Por Alice Andrade*
Você, branco ou branca, nunca teve escravos. Jamais xingou um negro(a). Tem amigos de pele escura. Portanto, não pode ser racista, certo? Errado – e muito errado. Desde que saíram do ventre de suas mães, pessoas nascidas no Brasil são socialmente moldadas em uma estrutura opressora a quem não é branco. Não é possível evitar: você é racista porque a sociedade é racista.
Se a colonização implicava na dominação territorial, a colonialidade significa os rastros deixados no modo de ser e agir das sociedades contemporâneas que passaram por esse processo. Assim, a raça é um elemento político importante usado para naturalizar discriminações, segregações e o genocídio (ALMEIDA, 2019, p.31).
Nos últimos anos, o debate acerca de lugar de fala tem ganhado força, em especial após a publicação do livro com esse título escrito pela pesquisadora e filósofa Djamila Ribeiro. Na obra, ela afirma que o conceito significa a localização social de onde se fala – e não o direito exclusivo de falar sobre determinado tema. Em termos práticos, em uma sociedade historicamente escravocrata como a brasileira, quem é negro vai experienciar o racismo de uma forma – sofrendo a opressão – enquanto quem é branco experiencia a mesma estrutura do lugar de quem se beneficia do sistema. Ambos podem falar a respeito do assunto, mas de lugares diferentes (RIBEIRO, 2019, p.85).
A pesquisadora estadunidense Robin DiAngelo, no livro “White fragility: why it’s so hard for white people to talk about racism” (não há edição em português, mas a tradução é: “Fragilidade branca: por que é tão difícil para brancos falarem sobre racismo”), reflete sobre a raridade com a qual os brancos pensam sobre sua existência racial, pois internalizam um senso de superioridade e universalidade.
Ou seja, superar o racismo exige um esforço contínuo de autocrítica e rupturas as quais, em grande parte, são desconfortáveis. O reconhecimento de que nossa educação foi fundamentada em ideais sociais racistas é o primeiro passo para tensionar a estrutura opressora contra negros e negras. Esse é um exercício complexo, pois envolve desde o questionamento ao sistema neoliberal fundador do racismo, passando pelo apoio a ações afirmativas e reparações históricas. Contudo, neste breve texto, pretendo abordar ações mais cotidianas que sujeitos brancos podem adotar se quiserem iniciar um processo (trans)formativo antirracista. São pontos provocativos. Não se trata de atribuir uma culpa imobilizadora, e sim de estimular a revisão de relações sociais racistas tão enraizadas. Sim, pessoas brancas interagem socialmente a partir de um lugar de privilégio e podem reeducar sua escuta e seu olhar para os elementos apresentados a seguir.
1) Leia autoras e autores negros(as):
Independentemente da sua área de estudo, quantos autores e autoras negros(as) havia nas bibliografias das disciplinas cursadas? Quantos(as) são considerados autores clássicos? Quantos(as) são suas referências? E quantas são mulheres negras? Quando costumo fazer essa pergunta a alguém, recebo como resposta poucos ou nenhum nome.
Ao longo da história, o conhecimento produzido por negros e negras foi subalternizado e colocado em uma posição de invalidade. O professor Renato Noguera, no livro O ensino de filosofia e a lei 10.639, analisa que uma das especificidades do racismo antinegro é a “zoomorfização sistemática”. Em outras palavras, os povos europeus e brancos interpretavam corpos negros como criaturas animalizadas, destituídas de alma ou inteligência. Esse foi um dos argumentos utilizados para justificar a escravização e o epistemicídio.
O epistemicídio é a subalternização de formas de conhecimento de grupos sociais historicamente subordinados, tais como indígenas, mulheres e negros. Aqui, compreendemos o epistemicídio a partir da perspectiva de Sueli Carneiro, que parte desse ponto de vista para analisar que esse conceito, na prática, pode ir além e está diretamente relacionado com a racialidade: é um processo de indigência cultural, pois deslegitima o negro como possível produtor de conhecimento científico, destruindo sua autoestima dentro do próprio processo educativo.
Por haver o apagamento de saberes produzidos por negras e negros, o pensamento social brasileiro é afetado, visto que somos a maioria da população (RIBEIRO, 2019, p.64). Embora sejam sistematicamente invisibilizados, esses conhecimentos existem. Há séculos os povos negros produzem saberes no – e sobre o – Brasil. Ler e visibilizar produções intelectuais negras é uma forma de brancos(as) aprenderem mais sobre o assunto e contribuírem com a sua valorização.
2) Enxergue-se como raça (e como racista)
Para sujeitos negros, entender-se como racializados é exercício de toda uma vida. Isso porque, a todo o momento, precisamos reagir aos mecanismos de opressão que uma sociedade estruturalmente racista nos submete. Por sua vez, pessoas brancas não costumam se enxergar enquanto racializadas. Isso acontece porque a colonialidade construiu um ideal de universalidade branco. Ou seja, existe o universal e o específico/identitário (negros e indígenas, por exemplo).
Características morais de um indivíduo branco, como a gentileza, empatia e educação, não o tornam isento de se beneficiar da estrutura racista (RIBEIRO, 2019, p.25). Ou seja, mesmo que você, branco, se coloque em uma posição de enfrentamento ao racismo, você é signatário desse sistema e usufrui dos privilégios que lhe cabem enquanto tal.
Em uma sociedade estruturada em um sistema opressor de negros e beneficiador de brancos, estes precisam se entender enquanto raça e enquanto racistas. Isso não significa o cultivo de culpa, e sim a conscientização sobre o seu lugar na retroalimentação de um sistema, seja de maneira consciente ou inconsciente. “O racismo foi inventado pela branquitude, que como criadora deve se responsabilizar por ele” (RIBEIRO, 2019, p.36).
Enxergar-se como parte dessa lógica pode ser desconfortável para você, que está aqui porque busca ser um aliado nessa luta. Porém, é um exercício importante de compreensão, interpretação e transformação da realidade.
3) Quando necessário, ocupe o lugar de escuta
Assumir o compromisso da luta antirracista implica, necessariamente, em ouvir e acolher os pontos de vista de pessoas negras quando necessário. Há alguns dias, compartilhei no Twitter uma opinião sobre um assunto voltado para a questão racial negra. Uma mulher branca, que discordou do meu ponto de vista, apresentou a seguinte resposta:
Ou seja, para ela, opinião válida é a da pessoa negra que diz apenas o que ela quer escutar. Não interessou o fato de eu vivenciar e estudar o assunto, e sim que, naquele momento, minha opinião merecia ser invalidada por ser diferente do que ela acreditava. Negras e negros são diversos, têm experiências e formas distintas de interpretar o mundo. Embora compartilhemos a racialidade, somos múltiplos e podemos pensar diferente. Usar a opinião de uma individualidade negra para invalidar a de outra é um argumento racista usado por brancos que não querem sair da zona de conforto da “razão” acerca de assuntos os quais sequer vivem ou estudam.
Além disso, quando um negro(a) aponta racismo de um branco(a), é comum ouvir frases como “Não foi intencional”, “Você interpretou errado”, “Isso é mimimi”, entre outras semelhantes. Contudo, é importante lembrar: o racismo não depende de intencionalidade. Segundo o professor Sílvio Almeida, a dimensão estrutural materializa o racismo e constitui “todo um complexo imaginário social que a todo momento é reforçado” (2019, p.65). A tomada de atitudes para modificar o sistema racial brasileiro parte da responsabilização – e, acima de tudo, de uma autorresponsabilização. Pessoas brancas também precisam se enxergar como parte dessa problemática e ouvir negros(as) que buscam alertá-las para tal – sem questionamentos ou justificativas que mais visam afagar o ego a resolver o problema.
4) Entenda que a linguagem também oprime
Quando entendemos o racismo enquanto estrutura, é possível enxergar os elementos sociais que contribuem para a sua manutenção. Uma dessas ferramentas é a linguagem, que ao longo da história foi privilégio da branquitude. Ao serem sequestradas e trazidas ao Brasil para a exploração, populações africanas tiveram de abrir mão de sua linguagem e outras formas de expressão para aprenderem a língua do colonizador. A pensadora Sueli Carneiro (2011, p.70) revela que o racismo aprisiona o outro em estereótipos, enquanto garante às pessoas brancas o direito de serem representadas em sua diversidade.
Por isso, ao assumirem o compromisso com a luta antirracista, indivíduos brancos devem cumpri-lo também com a autovigilância ao vocabulário. Além de palavras e expressões como “denegrir”, “criado-mudo”, “inveja branca” e “mulata”, etimologicamente racistas, relativizar o racismo também é uma maneira de reforça-lo. Ideias como “racismo reverso”, “não sou racista, tenho amigos negros”, “isso é vitimismo”, “descansa, militante” e “não é racismo, você interpretou errado” contribuem para hostilizar uma luta secular.
É preciso parar de associar a cor negra ao pejorativo, seja em palavras ou em ideias, pois a linguagem é portadora de valores e estigmas sociais.
5) Assuma o protagonismo do seu aprendizado
“Me ensine, quero aprender”. Se você for negro ou negra, é possível que tenha escutado essa frase uma ou mais vezes. Se é branco ou branca, provavelmente já falou isso para um conhecido(a) racializado. Essa sentença não é necessariamente um problema, principalmente se uma pessoa negra se dispôs a compartilhar conhecimentos. Porém, generalizar a obrigatoriedade da pedagogia por parte de quem já está sendo oprimido é um caminho que não deve ser seguido.
Desde o período colonial os sujeitos negros são postos em lugar de servidão aos brancos. Por que, no momento do aprendizado antirracista, também é nossa obrigação estar sempre ensinando? Sinto-me satisfeita ao ensinar sobre racismo também a colegas brancos, mas esse é um caminho individual que eu escolhi quando ingressei na carreira acadêmica. Não é obrigação de todas as pessoas negras. Djamila Ribeiro (2019, p. 40) brinca com o fato de comumente brancos(as) nos colocam no lugar de “Wikipretas” e exigirem respostas a tudo sobre as questões sociais. Entretanto, ter autonomia no próprio processo de “desconstrução” é importante para desenvolver um senso autocrítico.
Estude autores e autoras negros(as), compre cursos oferecidos por estudiosos racializados, busque vídeos de assuntos relacionados, siga gente negra nas redes digitais, questione a realidade social ao seu redor e posicione-se contra o racismo. Do lugar social o qual você ocupa, ser ativo(a) nessa luta é imprescindível.
*Alice Andrade (Instagram: @andradealice_) é jornalista, mestra e doutoranda em Estudos da Mídia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e pesquisadora de mídia e relações étnico-raciais.
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“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom é um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.
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