Viagem no tempo? Observatório de Mídia

quinta-feira, 25 fevereiro 2021
O jogo "Life is strange" foi lançado em 2015 para PS4 e XBOX.

“Life is Strange” e a representatividade LGBT e latina dentro dos jogos da franquia

Por: Ana Karolina Carvalho e João Pedro Luna

“Esta ação terá consequências”, o aviso repetido no decorrer do jogo Life is Strange nos apresenta um dos conselhos básicos da vida real, o de que toda ação gera uma reação. Entrar no universo de Life is Strange é como fazer uma viagem de montanha russa pelas incertezas e acasos da vida. Lançado em 2015, o jogo para PS4 e XBOX nos coloca na pele da personagem Max Caulfield, uma adolescente que se muda de volta para sua cidade natal e adquire o poder extraordinário de voltar no tempo.

Somos envolvidos pela trama sensível da jovem que enfrenta diferentes problemas enquanto precisa decidir entre salvar uma relação ou salvar sua cidade. Mas afinal, o que nos leva a análise de Life is Strange? Não pretendemos aqui explorar as diferentes realidades e discussões sobre tempo em que somos postos durante a jornada de Max, mas sim a sua representação dentro do jogo.

O mundo dos jogos, assim como o cinema e as produções televisivas, sempre tiveram uma dose de influência social principalmente nas gerações mais jovens. Contudo desde o seu surgimento os games tiveram como foco o mundo masculino. A extensa lista de personagens representados por figuras masculinas destemidas e musculosas dominaram por um bom tempo as produções, a jornada do herói sempre era marcada por ação, violência e mulheres que por sua vez também seguiam um padrão, sempre representadas como “mocinhas” com traços de inocência e visualmente hipersexualizadas.

Ana Karolina Carvalho (Foto: arquivo pessoal)

Não é de se estranhar que até alguns anos atrás os games praticamente não tivessem protagonistas femininas em suas histórias, um padrão quebrado pelo surgimento de Lara Croft, uma marcante personagem feminina que se assemelhava a Indiana Jones e assumia o protagonismo da franquia Tomb Raider como uma aventureira que enfrentava diferentes perigos. Hoje, podemos perceber como outras minorias como pessoas LGBT eram grupos representados nos games sem que fossem de fato percebidos como tal, .

Um dos personagens LGBT mais marcantes em um jogo foi “Birdo”, um dinossauro cor de rosa que põe ovos pela boca e é definido como “um homem que se acha uma mulher” em 1988 no clássico Mario Bros 2. Por mais que na época não houvesse uma discussão sobre transexualidade entendemos que Birdo é um personagem transsexual que tem destaque na narrativa do jogo. Além de Birdo, tivemos também a personagem “Flea” em Chrono Trigger, sendo um dos chefões do jogo era representado como um ser não-binário, que em suas falas questionava os padrões de gênero que queriam lhe impor.

Quando pensamos na presença de personagens negros temos em GTA San Andreas o primeiro jogo com um protagonista negro que atingiu um sucesso estrondoso. Embora no jogo a narrativa seja de um homem negro no mundo do crime, é importante ressaltar que o game traz críticas sociais pertinentes que demonstram o preconceito sofrido pela comunidade negra norte americana, a sua marginalização perante a sociedade e os abusos que sofrem por autoridades. É dentro dessas reflexões que retornamos ao nosso ponto inicial: O que Life is Strange traz de representatividade?

Temos em Life is Strange uma personagem jovem que não é representada como uma figura altamente forte, muito pelo contrário, entramos em uma narrativa cheia de inseguranças, medos e incertezas típicas de qualquer adolescente. O principal ponto do jogo talvez seja a relação entre Max e sua melhor amiga Chloe. A relação que para alguns jogadores pode ser apenas amizade, no entanto, assume um papel mais romântico a medida que a narrativa avança. Contudo, por ser um jogo de escolhas, em Life is Strange os jogadores têm ainda a opção de desenvolver relações afetivas com um personagem masculino, Warren, apresentando assim a personagem como bissexual.

A representatividade LGBT dentro do jogo tem uma finalidade de causar identificação com o jogador, ao construir sua própria história eles têm a oportunidade de se espelhar nas personagens que podem manifestar suas sexualidades, encontrando assim um lugar de reconhecimento.  Além da representação LGBT, a sequência do jogo, Life is Strange 2, traz uma questão ainda mais importante, a vivência de imigrantes latinos na América do Norte.

No enredo, após um acidente fatal causado por circunstâncias sobrenaturais, dois irmãos se veem obrigados a fugir de casa por segurança e começam uma jornada de sobrevivência enquanto são perseguidos pelas mais diversas ameaças no seu caminho. Assim se inicia a história de continuação da franquia de Life is Strange, que se desenvolve dentro de um cenário pós-eleição de Donald Trump como novo presidente dos Estados Unidos (2016) e aborda através do ponto de vista dos seus protagonistas a perseguição e o preconceito sofrido pelos imigrantes e americanos de origem latina e hispânica no país.

João Pedro Luna.

Segundo o Departamento do Censo dos Estados Unidos (Census Bureau), os registros mais recentes datados de 2019, indicam que a população hispânica aumentou em cerca de 20% desde 2010 e, atualmente o número dessa parcela é aproximadamente de 60,5 milhões de pessoas. O censo estadunidense considera origem hispânica e raça como duas definições distintas entre si: a origem hispânica se refere às raízes hispânicas, latinas ou espanholas, observando que as pessoas hispânicas podem ser de qualquer raça.

Com o aumento da população de origem latina e hispânica dentro do país e o contexto político vigente, consequentemente, as impressões da vida real são transferidas para o meio digital, no caso, o jogo. Aqui, por outro lado, essa similaridade é feita propositalmente, no qual para a maioria das pessoas e, principalmente, sob o olhar das autoridades, os irmãos protagonistas, Sean e Daniel, são vistos como ameaças por onde andam independente da fuga ou busca por sobrevivência.

Nesse espectro, observamos que a reprodução das figuras e estereótipos latinos dentro dos games se mantém recorrente desde as suas primeiras aparições, mesmo que em pouquíssimos ocasiões. “Desde o início, os latinos estiveram em muitos jogos de ‘arcade’, mas basicamente como os personagens que tinham que ser assassinados para que o jogador branco pudesse triunfar. Esse tipo de entretenimento reforça os estereótipos pejorativos associados à comunidade hispânica e ignoram a grande diversidade étnica.” (FREDERICK LUIS ALDAMA, Professor Latinx, 2020)

Em outros jogos mais antigos como Border Patrol e Ethnic Cleasing, o personagem principal, homem branco, deve matar mexicanos e imigrantes ilegais que tentam atravessar a fronteira entre Estados Unidos e México, assim como se aplica posteriormente dentro do game para as populações de origem latina, hispânica, negra e judaica. Dessa forma, a afirmação do autor em achar uma solução para interromper a reprodução de conteúdos racistas e preconceituosos dentro dessas plataformas digitais, encontram-se na inclusão de designers e roteiristas latinos dentro da indústria dos games, estes que através de outras produções, consigam transformar a visão e a representação latina nos games de maneira positiva.

Ciclicamente, a continuação da franquia Life is Strange é de extrema importância dentro da indústria dos games por ser considerado um passo essencial não apenas pela representatividade da cultura e do povo latino-hispânico, mas também pela mudança do estigma preconceituoso que perpetua em um contexto social generalizado para com as minorias no território estadunidense e internacional. Certamente Life is Strange, assim como no jogo, gerou uma boa dose de consequências, só que dessa vez todas positivas capazes de influenciar em gerações jovens e na sociedade.

A coluna Observatório de Mídia é atualizada quinzenalmente às quintas-feiras. Leia, opine, compartilhe e curta. Use a hashtag #observatorionossaciencia. Estamos no Facebook (nossaciencia), Twitter (nossaciencia), Instagram (nossaciencia) e temos email (redacao@nossaciencia.com.br).

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JOII – Grupo de pesquisa em Jornalismo, Inovação e Igualdade da Universidade Federal do Piauí

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