Milagres: a multiplicação da água Meio Ambiente

terça-feira, 29 novembro 2016

Experiência em assentamento rural reaproveita 100% dos esgotos produzidos na comunidade para a produção de flores, plantas ornamentais, e mudas de espécies da Caatinga

A água em uso na Terra é sempre a mesma. A água evapora, formam-se as nuvens, estas condensam e a água da chuva cai no solo abastecendo os mananciais, que provêm o consumo humano e animal. Depois de consumida, a água passa por um processo químico natural, volta aos mananciais, evapora e o ciclo hidrológico está completo. O problema é que o consumo está cada vez maior do que a capacidade da natureza de “limpar” a água para que ela volte a ser consumida.

Considerando-se que a vida não prospera sem água, tem-se então a justificativa primordial para a realização de pesquisas que apontem para eficientes sistemas de tratamento e reuso de água, logo após o consumo humano. No semiárido brasileiro um elemento agrava ainda mais a necessidade de máximo aproveitamento da água. Nessa região, a grande disparidade entre o que chove e o que evapora gera um imenso déficit de água.

Milagres

No assentamento rural Milagres, no município de Apodi (RN), a 370 quilômetros de Natal são boas as notícias sobre a utilização de águas residuárias tratadas na produção de flores, plantas ornamentais, forrageiras, oleaginosas e mudas de espécies arbóreas.

Milagres tem 107 habitantes em 28 residências. Para a pesquisa da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa), iniciada em 2009, foi instalada uma rede coletora de todo o esgoto doméstico produzido, além de um decanto-digestor para tratamento desse esgoto bruto. As bactérias funcionam como filtros biológicos nesse sistema, removendo sólidos suspensos decantáveis (matéria orgânica oriunda da lavagem de pratos e roupa e, em maior quantidade, urina e fezes), areia, óleos e graxas. Após o tratamento primário, a água vai para uma cisterna de placa, de onde é bombeada para os experimentos.

Um dos coordenadores da pesquisa, o professor Miguel Ferreira Neto (foto), do Programa de Pós-Graduação de Manejo de Solo e Água da Ufersa, enumera o que tem sido produzido com a água do reuso. “Temos produção de hortaliças, grãos, fibrosas, forragens e flores tropicais. Tem pimenta, cana de açúcar, girassol ornamental, milho, feijão, arroz, algodão e mudas para reflorestamento de espécies da Caatinga.” 

Palma irrigada

Seja para consumo da comunidade, seja forragem para animais, sejam grãos para serem consumidos cozidos ou frutas, todos os produtos produzidos a partir do uso da água do tratamento de esgoto são processados e testados e têm suas partículas descritas. Segundo o pesquisador, durante a produção, esses produtos não podem entrar em contato direto com a água, porque mesmo tratada, ela ainda tem uma carga viral e de contaminantes importantes na saúde humana e podem causar doenças. Por esta razão, as plantas não podem ser rasteiras.

Ferreira Neto explica que foram feitos muitos experimentos para se encontrar a proporção mais indicada para cada espécie. Em 2013, o grupo decidiu investigar a adaptação ou não da palma à irrigação com água de esgoto e agora a viabilidade está comprovada. “O cultivo de palma irrigada é uma coisa extremamente inovadora”, vibra.

Neto de agricultores, o professor, que tem Doutorado em Irrigação e Drenagem pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq/USP), é enfático ao explicitar uma questão metodológica. “Fizemos questão de trazer a comunidade para a pesquisa. A participação da comunidade gerou grande diferença, porque isso possibilita o entendimento da tecnologia, como é que funciona o tratamento de água dentro da comunidade e como é que essa água pode ser manejada. Todas as etapas eram muito bem explicadas. Tivemos também a participação nas ações de construção, eles próprios fizeram a ligação de suas casas à Estação de Tratamento de Esgoto (ETE).” 

Participação popular

O pesquisador reconhece que a contratação de uma empresa de construção teria reduzido o período de implantação da estrutura necessária em pelo mesmos seis meses, mas o ganho do tempo não compensaria a perda da participação popular. “Eles entendem a Estação (de Tratamento) como mais uma casa dentro da Associação ou dentro da comunidade, ou seja, eles entendem que aquilo é deles, não foi dado ou trazido de paraquedas na comunidade. Eles são parte integrante de toda a transformação.” 

A ideia da pesquisa era gerar uma proposta e testá-la de forma segura e eficiente de reuso e água pela comunidade, mas acabou indo ao encontro dos anseios reprimidos da população, de investimentos públicos em ações nas áreas de saúde, de economia que possibilitem melhor qualidade de vida para a população. A explicação do professor sobre dos objetivos iniciais demonstram a ampliação do alcance da pesquisa.

Os recursos da pesquisa são oriundos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Justificando o projeto, o professor afirma que o próprio saneamento e a consequente melhora da qualidade de vida, da saúde pública da população já seriam suficientes. Mas não é só isso e ele enumera outras vantagens advindas secundariamente: “Essa água, que foi tratada, não vai por córrego ou ser levada novamente para o mar, ela retorna ao processo produtivo, gerando alimentos, gerando produtos que são imprescindíveis para a economia da comunidade.”

Aplicação do modelo

Afirmando não ter dúvida sobre a viabilidade da replicação do modelo, o pesquisador chega a defender sua aplicação em todos os assentamentos rurais. “A manutenção da ETE é extremamente irrisória. A cada período de dois anos, nós fazemos uma retirada do lodo de esgoto que é decomposição da matéria orgânica provocada pelas bactérias. Essa remoção é como se estivesse limpando uma fossa séptica”, revela. Para ele, até mesmo o resíduo dessa limpeza é mais uma justificativa para adoção do modelo proposto na pesquisa em outras comunidades. “É extremamente fértil, é um adubo natural em condições potenciais de provocar alterações benéficas nos vegetais, porque têm grandes concentrações de nutrientes como Nitrogênio, Fósforo e Potássio, utilizados pela planta para o seu desenvolvimento.”

Segundo o professor Miguel Ferreira Neto, mais de 50 artigos em publicações científicas nacionais e internacionais, 10 dissertações e seis teses foram produzidos sobre a experiência de Milagres. O grupo de pesquisadores conta ainda com os professores Manoel Lucas Filho e Dinarte Aeda da Silva, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte; Sandra Maria Campos Alves, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte; João Evangelista dos Santos Filho e Marcírio de Lemos, do Centro Terra Viva; e Rafael Oliveira Batista, José Francismar de Medeiros e Nildo da Silva Dias, da Ufersa.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Site desenvolvido pela Interativa Digital