Artigo de Rodrigo Gonçalves Pereira, professor do Instituto Internacional de Física da UFRN, sobre o trabalho dos pesquisadores Thouless, Kosterlitz e Haldane que dividiram o prêmio Nobel de Física de 2016
A física sempre se utilizou da matemática como linguagem e como ferramenta para investigar os fenômenos naturais. No entanto, essa parceria ocorre às vezes de maneira inesperada entre ramos das duas disciplinas sem nenhuma relação óbvia. Um exemplo disso é a aplicação de conceitos de topologia ao estudo de transições de fase da matéria. O prêmio Nobel de Física de 2016 foi concedido a três pesquisadores em reconhecimento a seus trabalhos pioneiros nesta área.
O problema de classificar as fases da matéria
Um exemplo de transição de fase que observamos no dia a dia é a fusão do gelo, que ocorre a zero graus Celsius sob a pressão atmosférica. No nível microscópico, esta transição de fase está associada a um rearranjo das moléculas de água, que no estado líquido se movem desordenadamente, enquanto que no sólido se arranjam formando um padrão cristalino bem definido. No nível macroscópico, a mudança no ordenamento dos átomos se manifesta como uma mudança abrupta em propriedades como a densidade (a da água sendo maior do que a do gelo) e a resposta a tensões externas (que fazem o líquido fluir, mas o sólido não).
Desde que se descobriu, no começo do século XX, que o comportamento da matéria na escala atômica é regido pelas regras da mecânica quântica, os físicos tem se deparado mais seriamente com a pergunta: quais são todas as possíveis fases da matéria? A resposta certamente vai além das fases de sólido, líquido e gás, uma vez que transições de fase também são observadas nas propriedades eletrônicas de um material. Exemplos disso são as transições entre metais normais e supercondutores, ou entre vários tipos de fases magnéticas. Apesar da complexidade do problema, uma teoria bastante geral de transições de fase havia sido desenvolvida com sucesso antes dos anos 1970. Essa teoria prevê que duas fases são diferentes — e existe necessariamente uma transição entre elas — quando possuem diferentes simetrias no nível microscópico, como no exemplo da água e do gelo, em que a simetria se reflete no arranjo dos átomos.
A relação entre topologia e transições de fase
No ano de 1972, os pesquisadores John Kosterlitze David Thouless, então na Universidade de Birmingham, no Reino Unido, quebraram o paradigma da teoria de transições de fase ao propor o que chamaram de “transição de fase topológica”. O objetivo deles era investigar certos modelos teóricos que se aplicam tanto a materiais magnéticos quanto a superfluidos bidimensionais. “Bidimensional” significa que a direção da magnetização, no caso magnético, ou o movimento dos átomos, no caso do superfluido, estão restritos a um único plano, ao invés de ocupar todo o espaço tridimensional. Na prática, isso pode ser feito, por exemplo, construindo-se um filme muito fino do material. Na época, estudos numéricos davam boas evidências de uma transição de fase nesse modelo. O problema era que, segundo a teoria convencional, transições de fase seriam estritamente proibidas neste tipo de sistema em qualquer temperatura acima do zero absoluto.
Entretanto, segundo a teoria de Kosterlitz e Thouless, um novo tipo de transição de fase era possível sem que houvesse uma mudança na simetria do sistema. Esta transição está associada à dinâmica dos vórtices. Estes vórtices são excitações microscópicas de um superfluido, análogas ao centro da circulação do vento no olho de um furacão. A diferença é que, no superfluido, cada vórtice tem uma circulação quantizada, de maneira muito parecida com a quantização da carga elétrica de partículas elementares. A transição de Kosterlitz-Thouless pode ser entendida como aquela em que os vórtices, que estão ligados em pares em baixas temperaturas, libertam-se e movem-se livremente acima de uma certa temperatura crítica.
Mas por que isso seria uma transição de fase topológica? A topologia é um ramo da matemática que estuda as propriedades de objetos que são preservadas por transformações contínuas. Estas propriedades são genericamente chamadas de invariantes topológicos. O exemplo mais simples é o numero de buracos em um objeto geométrico: dizemos que uma caneca de café e uma rosquinha são topologicamente equivalentes porque ambas possuem um único buraco. A conexão entre topologia e a transição no superfluido bidimensional vem de que os vórtices são quantizados e, por isso, a circulação numa região macroscópica pode ser associada a um invariante topológico. Assim como o número de buracos de uma rosquinha, este invariante só pode assumir valores inteiros. Além disso, ele só pode mudar quando ocorre a transição de Kosterlitz-Thouless, em que os vórtices passam a se mover livremente.
O novo paradigma de fases topológicas
O estudo de fases topológicas teve um novo impulso nos anos 1980. Um dos motivos foi a descoberta do efeito Hall quântico, observado em sistemas eletrônicos bidimensionais submetidos a fortes campos magnéticos. Variando o campo magnético, é possível induzir transições entre várias fases com a mesma simetria, mas propriedades físicas diferentes. Por exemplo, a condutância elétrica das fases de efeito Hall quântico é quantizada em diferentes múltiplos de uma unidade fundamental. Em 1982, um trabalho de Thouless e colaboradores mostrou que a quantização da condutância pode ser explicada por sua associação a um invariante topológico calculado a partir das funções de onda dos elétrons. As transições de fase ocorrem quando esse invariante muda descontinuamente de um número inteiro para outro.
Outro desenvolvimento importante foi o trabalho de Duncan Haldane, então na Universidade do Sul da Califórnia. Em 1983, Haldane mostrou que a topologia também tem papel importante para distinguir entre fases de sistemas magnéticos unidimensionais conhecidos como cadeias de spin. As previsões desta teoria foram confirmadas experimentalmente. Posteriormente, a chamada “cadeia de Haldane” tornou-se o primeiro exemplo do que hoje se chama de fase topológica protegida por simetrias.
Thouless, Kosterlitz e Haldane dividiram o prêmio Nobel de 2016 por suas contribuições fundamentais ao estudo de fases topológicas. O prêmio foi dado por trabalhos teóricos, reconhecendo assim a importância da ciência básica que busca simplesmente compreender a natureza. Entretanto, esta área é relativamente próxima de aplicações, pois a descoberta de novos materiais pode levar ao desenvolvimento de novos dispositivos. De fato, já existem várias propostas de tecnologias baseadas em materiais topológicos. O que se pode dizer com certeza é que esta excitante área de pesquisa manterá os físicos, teóricos e experimentais, ocupados por um bom tempo.
Rodrigo Gonçalves Pereira: professor do Instituto Internacional de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Doutor em Física pela Universidade da Colúmbia Britânica (Vancouver, Canadá). Tem experiência em teoria de física da matéria condensada, com ênfase em magnetismo em sistemas quânticos de baixa dimensionalidade.
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