Pesquisadora reflete sobre seus textos que expressam suas raízes indígenas e tudo aquilo que ela é
Andrielle Mendes
Este é um texto de agradecimento a você, que dedicou algumas horas da sua vida para ler, pensar e discutir as palavras que lancei no mundo em 2020. Talvez eu não te conheça, mas sei que você me conhece, pois minha caminhada dentro e fora da universidade tem sido pautada por um maior alinhamento entre aquilo que eu sou e aquilo que eu falo.
As palavras que lancei ao longo do ano, portanto, resumem muito daquilo que eu consegui soltar e deixar ir. “Foi como se vomitasse tudo o que estava preso”, assim descreveu uma amiga, ao comentar o primeiro texto que publiquei aqui, numa aula sobre direitos humanos [sim, dois textos que publiquei na coluna foram parar na sala de aula, graças à indicação das educadoras Socorro Veloso, Ângela Pavan e Alice Andrade].
Naquela época, descobri que tinha direito a cuspir o veneno da colonialidade; a pôr para fora os episódios de racismo, violência e subjugação; a vomitar todas as maldições ditas contra mim e contra os meus. Agi como “uma guerreira Potiguara”, observou um amigo, antes mesmo de eu saber que o povo Potiguara era um dos povos mais fortes e poderosos da região Nordeste antes da colonização [o povo Potiguara até hoje luta pelo direito de viver em seus territórios].
Escrevi os primeiros textos com violência, porque ainda não sabia como organizá-la de outra forma. Hoje tenho algumas pistas de como canalizar essa energia de um modo que me desgaste menos. Agradeço a você por me acompanhar em meio a esse exercício de retomar a minha voz. Você foi ouvido, ombro. Foi colo, onde pude encostar a cabeça e me organizar a partir de dentro.
Você não sabe, mas me ajudou a chegar à outra margem após uma longa travessia…uma travessia por dentro das minhas e-moções, por dentro das minhas águas internas. Segunda passada, completei 32 anos. Desses 32 anos, 31 eu vivi à margem de mim, sem saber bem quem eu era nem de onde eu tinha vindo.
Você faz ideia do que é passar 31 anos de 32 sem se saber mulher indígena, quando se é uma? De olhar para o espelho e não querer se (re)conhecer, porque o poder dominante tentou inúmeras vezes exterminar o seu povo? A maioria dos defensores dos direitos humanos assassinados no Brasil é indígena. Você sabia disso? “Andrielle, você passou muito tempo sem ter permissão para aparecer, para falar. Sem ser escutada”, disse minha terapeuta e ela não podia ter sido mais assertiva. Sim, passei muito tempo. Uma centena de anos, como escreve Graça Graúna.
Um dos meus maiores desafios hoje têm sido reaprender a falar nos meus termos, ou como costumo dizer: a falar minhas palavras e pensar os meus pensamentos. Não é simples, pois ainda estou buscando as palavras que roubaram de mim. Os escritores, os cineastas, os músicos, os linguistas, os intelectuais indígenas me ajudam ampliando o meu repertório, o meu vocabulário. Com eles, entro em contato com histórias e memórias que o tempo não enterrou.
Dois mil e vinte ficará gravado como o ano em que eu mais falei publicamente. Fui convidada para mediar encontros, dar palestras, ministrar aulas sobre direitos humanos; mídia contra hegemônica; publicidade e cidadania; mídia e identidade; semiótica e decolonialidade; descolonização da comunicação; pensamento indígena latino-americano; inserção de negros e indígenas nas universidades públicas. “Você é a única especialista nesse assunto no departamento inteiro”, ouvi numa das aulas. Mas cansa ser a única (entre os autodeclarados), sabe? Não só fisicamente. Cansa emocionalmente também.
E é por isso que é tão importante aprender a descansar. Aprender a ocupar o território que é o nosso corpo. A cultivar a nossa saúde. A buscar uma maior conexão com a natureza que habita em nós. A visitar as águas, ouvir as plantas, observar os animais. Tecnologias ancestrais, que ajudaram o povo preto e indígena a atravessar séculos de sequestro, escravização, genocídio e múltiplas violências físicas e simbólicas.
Estamos vivos. Somos muitos. E estamos nos juntando. Para aprender a Bem Com-viver. A descansar sob os cuidados do outro, que nos guarda atento. Estamos refundando nossos quilombos. Estamos nos aldeando. Estamos aprendendo a atravessar o oceano do individualismo para formar nossas ilhas de solidariedade. Na internet, trocamos nossos saberes, porque nosso propósito de vida, assim aprendi, é o compartilhamento.
Minha tese de doutorado (com defesa prevista para 2021) é sobre colonialidade, sobre colonização, sobre colonialismo. Eu usei boa parte das páginas dela tentando entender o que a colonização fez e faz conosco. Mas hoje virou uma chave dentro de mim. A partir de agora eu quero entender é o que a gente fez e faz com ela. Como a gente se cura em coletivo.
Um dos aspectos mais importantes do meu trabalho é refletir sobre como as sugestões, os ensinamentos e os procedimentos das sociedades originárias e tradicionais são relevantes para a garantia da sustentabilidade e da preservação do planeta (GRAÚNA, 2012), já que mesmo somando menos de 5% da população mundial, considerando apenas os autodeclarados, os povos indígenas protegem cerca de 80% da biodiversidade global.
Povos originários e tradicionais – indígenas, quilombolas, ribeirinhos – cujas narrativas contribuem para tensionar um sistema cognitivo, que separa o homem da natureza e coloca esta à serviço daquele. Não por acaso povos considerados mais próximos da natureza – povos agarrados à terra, segundo Ailton Krenak – foram e continuam sendo alvo de violências físicas e simbólicas no Brasil por apontarem, com suas existências, que existem outros caminhos possíveis além daquele imposto pela razão desenvolvimentista e colonialista da sociedade nacional brasileira.
Uma violência que os alcança com seu braço onde quer que eles estejam. Vou dar um exemplo: dentro das universidades brasileiras, neste exato momento, milhares de pesquisadores tentam garantir o direito de dizer a sua palavra e pensar o seu pensamento. São negros e indígenas, cujos antepassados foram amordaçados ou perderam as suas línguas no fio da espada da colonialidade do ser, saber, fazer e pensar.
Erigidas a partir dos pilares do colonialismo, racismo e sexismo, as instituições de ensino superior ainda abrigam dentro dos seus muros pesquisadores-escravizados, cujo trabalho engorda o currículo dos seus senhores-orientadores. Aqueles que tentam plantar projetos para garantir alguma colheita em seu proveito são chamados de preguiçosos. Se protestam, são chamados de raivosos, rebeldes, indóceis. São, quase sempre, silenciados ou apagados.
Diz-se que seus textos não são científicos, não são acadêmicos, são panfletários, são políticos. Impede-se que o violentado elabore a violência que sofreu, exigindo que continue a se comportar como indígena amansado ou criado mudo, para que não se escute o que o indígena e o negro têm a dizer, como analisa Grada Kilomba ao falar sobre o trauma causado pelo racismo.
Mas como aquilo que não é nomeado não pode ser transformado, é preciso que se dê nome às violências impostas aos grupos racializados, que demarcam a universidade. É preciso que se diga, e mais do que isso, que se problematize na forma de pesquisas científicas, os efeitos do racismo linguístico e epistêmico, que assombram os pesquisadores indígenas e negros, a ponto de mantê-los à uma boa distância dos frutos colhidos do seu trabalho.
Minha tese é, portanto, um exercício de transformar silêncio em linguagem. Nela, relato as violências impostas àqueles que um dia foram considerados bestas sem linguagem, sem inteligência, sem alma, e disseco os enfrentamentos de uma pesquisadora indígena, que precisou mudar de orientação para ver garantido o seu direito de se expressar nos seus termos.
O colonialismo adoece. Talvez por isso um dos seus maiores símbolos sejam as doenças contagiosas, que dizimam povos inteiros desde a invasão do que hoje chamamos de Brasil. Como, então, os povos indígenas – mas também os povos tradicionais, os quilombolas, os povos de terreiro, os ribeirinhos, os periféricos – se mantém minimamente sãos num mundo onde se respira morte? Que estratégias criaram e continuam criando para espalhar saúde física, mental, espiritual e emocional? O que podemos aprender com eles [E não só sobre eles]?
Minha bisavó usava as palavras dela, os dedos dela para curar toda a comunidade. Ela só precisava disso para exercer uma força curadora em seu entorno: seus dedos e suas palavras. Quais são os teus instrumentos de poder? Meu maracá estava mofando dentro do armário. Tirei ele de lá e o mofo estancou. Pega, portanto, o teu instrumento e coloca ele à serviço da tua comunidade. Teu instrumento é o teu olhar? Teu ritmo? Tua voz? Tua rima? Qual é o teu instrumento? Você sabe como usá-lo? A gente só aprende a fazer, fazendo. Então faz.
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Leia a coluna anterior: Associativismo, representação e práticas sociais
“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom é um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.
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