Doar telômeros é doar vida Biologia do Envolvimento

sexta-feira, 23 outubro 2020
Figura de microscopia fluorescência de cromossomos com seus telômeros marcados. Crédito: U.S. Department of Energy Human Genome Program.

Células imunes são capazes de aumentar o tempo de vida umas das outras. O mecanismo é totalmente novo. Quais serão as implicações?

Se tem uma coisa que eu adoro em estudar biologia são os momentos em que a natureza me mostra que eu não sei de nada. Sim meus caros, esse é um deles. Há muito tempo sabemos que uma estrutura na ponta dos nossos cromossomos, os telômeros, são importantes na determinação do tempo de vida da célula. Quando eles estão longos, a célula vive mais. Existem assim, diversos mecanismos dentro da célula que regulam o comprimento dos telômeros e por consequência, seu tempo de vida. Mas o que o artigo de Bruno Vaz e seus colaboradores mostra (é um preprint, ainda está sendo revisado por pares) é que também outras células podem regular o comprimento dos telômeros de linfócitos (células imunes, dentre elas aquelas que produzem anticorpos). Para fazer isso, estas células “doam” seus telômeros para os linfócitos.

Mas espera lá, vamos entender primeiro o que são os telômeros. Para uma célula se dividir em duas, antes, ela tem que duplicar o conteúdo de um bocado de coisas. Dentre estas coisas está o seu DNA. Para procariotos, como bactérias, duplicar o seu DNA é relativamente simples porque seus genomas e plasmídeos são DNAs circulares. Assim, a DNA polimerase sintetiza uma fita complementar àquela original e quando o último nucleotídeo se encontra com o primeiro, pronto, está pronta a nova fita.

eucariotos, todos os organismos com núcleo, como nós, inventaram um genoma em fitas lineares, que tem início e fim. E acontece que a cada vez que a célula duplica o seu DNA, fica faltando um pedacinho na ponta. Assim, quanto mais vezes uma célula original se duplicar, mais curta será a pontinha do cromossomo das células filhas. Isso é um grande problema. Se a célula não faz nada, a maquinaria de reparo de DNA entra em ação, congela o crescimento celular, levando a um quadro chamado de senescência celular. Esse fenômeno foi primeiro observado em culturas in vitro de fibroblastos. Estas células exaurem sua capacidade proliferativa após um certo número de divisões, enquanto seus telômeros encurtam.

Mas acontece que alguns tipos celulares promovem muitas rodadas de divisão no nosso corpo. E para não senescer muito rápido, as células inventaram o tal do telômero. Telômeros são repetições de nucleotídeos com a sequência TTAGGG que as células adicionam ao fim do DNA do cromossomo, evitando que as perdas que acontecem ao duplicar o genoma aconteçam em regiões mais “nobres”. Além disso, uma série de proteínas se ligam a esta região e impedem que essa ponta se ligue, por exemplo, à ponta solta de outro cromossomo. Ou mesmo que seja digerida por enzimas que degradam o DNA. Quanto maiores os telômeros, mais proteínas se ligam a eles e mais estáveis são os cromossomos.

Telomeros podem ser transferidos de uma célula para outra através de vesículas.

O problema do número de divisões de um clone de células, e sua senescência por encurtamento do telômero, é um desafio especial para os linfócitos. Isso porque os linfócitos T e B mantêm a nossa memória de encontros passados com proteínas estranhas, como as de vírus, bactérias e protozoários. Mas essas células não ficam circulando em abundância pelo nosso corpo, cada clone que guarda a memória de uma proteína invasora específica (um antígeno) possuí apenas poucos representantes. Ao reencontrarmos àquele invasor, estes clones específicos são estimulados a proliferar massivamente. O que o trabalho de Bruno Vaz e colaboradores mostra então, é que as células que apresentam a proteína invasora (as células apresentadoras de antígeno, ou APCs) para estimular a proliferação dos linfócitos específicos, também doa um pedaço dos seus telômeros para o linfócito! Para isso, eles juntaram APCs que foram expostas a proteínas de vírus, como o influenza, com linfócitos T. Após 24 horas juntas, estas células foram separadas e foi observado que os telômeros dos linfócitos aumentaram em média aproximadamente 3000 pares de base enquanto os das APCs diminuíram o mesmo valor. Esse alongamento não acontece se as APCs não forem expostas aos antígenos de vírus. Isso é, essa “doação” de telômeros só acontece se as APCs de fato apresentarem antígenos para os linfócitos.

Mas faltava mostrar o mecanismo. Será que realmente o telômero extra ganho pelos linfócitos veio das APCs? Ou foi tudo uma coincidência, enquanto os linfócitos aumentavam seus telômeros internamente as APCs encurtavam os seus? Para eliminar a possibilidade do alongamento interno, esses pesquisadores testaram se linfócitos que não possuem a enzima que promove a adição de telômeros, a telomerase, também se beneficiavam do contato com APCs. Dito e feito, o aumento do comprimento dos telômeros dos linfócitos é independente de telomerase. Mesmo quando eles inibiram a síntese de DNA, para eliminar a possibilidade de os telômeros estarem sendo produzidos por outra enzima, como a DNA polimerase, os telômeros seguiam aumentando. A hipótese de que era uma coincidência interna estava descartada. Mas faltava mostrar que os novos telômeros dos linfócitos vêm das APCs.

Foi então que eles utilizaram sondas, sequências complementares de DNA que se ligam aos telômeros, ligadas a moléculas fluorescentes que podemos acompanhar no microscópio. Quando as APCs são expostas a antígenos, surge um sinal forte de aglomerados de telômeros que se juntam próximos à membrana nuclear. Uma análise bioquímica fina destes aglomerados mostrou que eles são vesículas de diferentes tamanhos carregando entre 2 e 45 cópias de telômeros, que em média possuem 5 mil pares de base. Assim, as APCs liberam vesículas contendo telômeros durante seus contatos com linfócitos e estas vesículas devem ser incorporadas pelo mesmo.

Para mostrar que os telômeros das APCs vão parar nos cromossomos dos linfócitos, Vaz e seus colegas cultivaram APCs com um nucleotídeo diferentão, o BrdU, que as células incorporam ao seu DNA no lugar da timidina. Assim, se os linfócitos aparecerem com o telômero contendo BrdU, já sabemos de onde ele veio. Não deu outra, os telômeros com BrdU contidos nas vesículas das APCs são incorporados aos cromossomos dos linfócitos.

Mas como a doação dos telômeros é ativada? A exposição de antígenos virais para APCs ativa a degradação das proteínas que protegem os telômeros, deixando-os mais expostos. Com esta exposição, uma enzima que corta especificamente telômeros, chamada TZAP, promove a produção dos fragmentos de telômeros que entrarão nas vesículas. Tudo isso é uma cascata de eventos regulada pela degradação das proteínas que protegem os telômeros. A degradação artificial dessas proteínas leva à liberação das vesículas com telômeros mesmo sem a presença de antígenos.

Faltava então mais um capítulo nessa história. Como os telômeros das APCs se ligam aos cromossomos dos linfócitos? O primeiro passo foi procurar se alguma enzima candidata a mediar essa conversa também estava sendo transportada nas vesículas que carregam telômeros. Foi aí que esse grupo observou que lá estava a Rad51, uma proteína que atua na recombinação homóloga necessária para o alongar dos telômeros. Para testar se a Rad51 produzida pelas APCs participa da integração dos telômeros aos cromossomos lá no linfócito, eles então, inibiram a tradução do RNA mensageiro de Rad51 em proteína nas APCs. O que eles observaram foi que as vesículas de APCs sem Rad51 promoveram menos alongamento dos telômeros dos linfócitos. Muito legal. Assim, as APCs ativamente regulam o tamanho dos telômeros dos linfócitos que elas ativam, doando não só os telômeros mas a maquinaria necessária para a sua integração aos cromossomos.

Por fim, faltava mostrar o efeito do alongamento dos telômeros sobre a vida dos linfócitos. Os linfócitos que recebem a doação de vesículas com telômeros passam por mais rodadas de divisão, tanto in vitro quanto quando injetados em um camundongo vivo. Assim, a ativação dos clones de linfócitos que guardam a nossa memória imunológica por APCs provavelmente também envolve a regulação intercelular do tempo de vida dos mesmos.

Talvez esteja um pouco cedo para falar das implicações deste novo mecanismo. Lembremos que o artigo ainda está sendo revisado por pares e novidades, ou mesmo retrocessos, podem aparecer no processo. Mas caso se confirme, vai ser interessante observar se quando envelhecemos, nossas APCs perdem capacidade de produzir vesículas com telômeros. Será que o declínio imunológico associado à idade está associado a perda desta conversa entre estes dois tipos celulares? E será que podemos intervir?

Outra questão é sobre as diferenças na duração de memórias a diferentes antígenos. Por que algumas vacinas funcionam com uma única dose e outras devem receber reforço? Será que alguns antígenos levam a maior produção de vesículas com telômeros que outros? A manipulação deste mecanismo pode levar a estratégias de vacinação completamente novas. Mais ainda, será que antígenos de microrganismos não patológicos, que não ativam resposta inflamatória, mas são “vistos” pelo sistema imune, contribuem para a regulação da nossa imunidade a partir da doação de telômeros? Aguardemos meus caros, uma nova porta da percepção acaba de se abrir.

Referência:

Vaz, B.; Vuotto, C., Valvo, S. et al. (2020) Intercellular telomere transfer extends T cell life span.

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Leia o texto anterior: Os mistérios escondidos no cromossomo Y Neandertal

Eduardo Sequerra

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