Coletivos de mídia alternativa nem sempre são um contraponto aos meios hegemônicos
Por Ana Karolina Carvalho e Juliana Teixeira
A produção jornalística das últimas décadas, sobretudo a partir da popularização da internet, das redes sociais e dos dispositivos móveis, tem permitido a inserção de produtores de conteúdo que anteriormente não possuíam um espaço nos meios hegemônicos. Hoje, além da sensação de que os celulares são verdadeiras extensões do homem, pode-se notar o seu uso por diferentes camadas sociais e em diversas atividades profissionais, as quais são consideradas mais “empoderadas” no contexto contemporâneo.
Porém, contradizendo o que alguns esperavam e previam há alguns anos, nem sempre essa utilização é alternativa ou contra-hegemônica. Conforme já apontava Castells (2016), as relações de poder, muitas vezes, se reproduzem também no contexto das redes, contribuindo para a manutenção das relações de poder assimétricas existentes, as quais, por sua vez, se refletem na produção de conteúdos comunicacionais na internet.
Diante desse cenário, de todo modo, os movimentos sociais têm tido a possibilidade de vislumbrar novos produtos jornalísticos e de propaganda, novas relações com os meios de comunicação e seus profissionais e novas oportunidades para alcançarem visibilidade às suas causas e questões. Surgem, portanto, iniciativas como os coletivos de mídia, tais como o Quebrando o Tabu (@quebrandootabu) e o Seremos Resistência (@seremosresistencia), analisados nesse texto.
Esses coletivos perpassam pelas funções de ativistas e jornalistas, constituindo a ideia que costuma ser conceituada como “ciberativismo”. Assim, esses participantes possuem mais liberdade em determinadas coberturas, especialmente as políticas, em que os jornalistas dos meios tradicionais têm menos liberdade opinativa, por exemplo. Além disso, as mídias mais alternativas, por se apresentarem como um contra discurso, conseguem penetrar em determinadas “bolhas” de público nas quais a mídia hegemônica, em geral, não consegue adentrar (ou não sem certa desconfiança).
Tal potencial, contudo, não tem garantido aos coletivos de mídia uma produção jornalística efetivamente contra-hegemônica ou mais comprometida com ideais alternativos de compreensão da realidade e do mundo. E não foi em vão que optamos por, aqui, analisar os dois perfis já mencionados: Quebrando o Tabu e Seremos Resistência.
Os perfis mencionados possuem um grande alcance dentro da rede, a sua produção de conteúdo, voltada para questões sociais, deveria fomentar o debate em torno das lutas, porém acaba, algumas vezes, promovendo um esvaziamento dessas pautas sociais importantes. Mas como isso acontece? Não é preciso muito para que se perceba tais indícios na produção dos conteúdos das páginas, na medida em que ambas possuem um leque de frases quase “prontas” que são aplicadas a diferentes imagens e diferentes contextos relacionados a pautas sociais de importância. Como esperar que uma única frase genérica promovesse a conscientização em torno de assuntos tão importantes como o racismo, o machismo ou a homofobia?
Tal comportamento é conhecido na internet como “militância de telão”, basicamente resumida por pessoas e páginas famosas que se apropriam de lutas e causas sociais pronunciando informações simplórias e óbvias que não contemplam a amplitude e as problemáticas reais daquela questão em troca de visibilidade dentro da rede.
Nesse contexto trazemos exemplos de como o material circulado nas redes desses dois perfis retratam a face da “militância” dentro de meios de comunicação alternativos das redes ditos contra-hegemônicos.
O primeiro caso a ser analisado é a utilização da bandeira antifascista pelo perfil Seremos Resistência nos meses de maio e abril deste ano (2020) durante manifestações nazistas e fascistas que ocorriam no Brasil (imagem que abre esse texto). O perfil se apropriou da bandeira do movimento antifascista e criou mais de 50 visuais diferentes para esta, incorporando cores e nomenclaturas novas. Ao se apropriar da bandeira e alterar suas cores, identificamos certo desrespeito e negligência com a história do movimento antifascista, que construiu sua identidade baseada na aliança entre os movimentos anarquista e comunista.
Originalmente a bandeira antifascista é composta por três cores: branco, preto e vermelho. As duas bandeiras viradas para a esquerda possuem a cor vermelha (comunismo) e preta (anarquismo). A presença de outras cores na composição da bandeira antifascista tem diferentes representações e simbologias políticas, como por exemplo, o uso do amarelo ligado ao movimento anarco-capitalista. Além de ignorar a história do movimento antifascista, temos a ausência de um debate sobre o próprio movimento e a sua simbologia de cores. A adaptação de nomenclaturas diversas como “crush”, “poc”, “comunista safada” e até times de futebol leva a uma banalização do real significado de ser antifascista.
Contudo, o esperado engajamento e disseminação por parte do público aconteceram em proporções gigantescas e o conteúdo acabou disseminando uma ideia esvaziada (ou, ao menos, bastante enfraquecida) de seu real significado e luta. É fato que a “militância” conseguiu seus likes. O problema é que essas formas de interação, likes e comentários tornam-se o motivo principal da produção de conteúdos dentro dessas páginas, uma vez que é através da circulação do conteúdo que elas ganham destaque na rede.
Dentro desse aspecto podemos citar também a página Quebrando o Tabu, que possui um grande destaque por ser reconhecida nacionalmente e possuir diversos seguidores famosos. Portanto, a página tem um alcance significativo de influência dentro das redes; contudo, seu conteúdo é criticado e ironizado pela falta de aprofundamento e a presença da “militância de telão”.
Um dos aspectos mais visíveis dessa superficialidade é a forma como são construídos os seus textos. As três postagens a seguir apresentam uma frase que basicamente repete a mensagem da imagem, sem nenhuma discussão ou questionamento quanto ao conteúdo. A ausência de um debate ou desenvolvimento de uma ideia completa é perpetuada com a disseminação do post: as pessoas curtem e compartilham, mas não têm uma percepção real da luta social ou crítica ali demonstrada.
Tal superficialidade apresentada nos posts da página costuma ser ironizada pelos internautas na rede que compreendem o quanto o conteúdo disseminado provoca esse esvaziamento de pautas importantes. As críticas, porém, são em sua maioria veiculadas em outras redes sociais; geralmente o Twitter, em que pautas e lutas sociais muitas vezes ganham repercussão e são aprofundadas por diversos internautas engajados. A página adquire, ainda, dentro dessa rede, um status de meme e é utilizada como denominação para pessoas falsamente engajadas em lutas sociais e que apenas replicam frases e pensamentos generalizados sobre questões importantes.
A partir das discussões e exemplificações apresentadas até aqui, podemos reafirmar que, embora os ideais dos coletivos de mídia tenham um papel essencial para fomentar agendas alternativas de debate, nem sempre produzem, de fato, uma consciência social aprofundada sobre determinadas pautas. Portanto, é cada vez mais necessário e urgente que esses grupos de militantes e jornalistas apresentem conteúdos com reflexões mais abrangentes e aprofundadas sobre certas questões sociais tão relevantes para seu público, sobretudo quando pensamos em sua posição de “contraste” às mídias tradicionais na dinâmica midiática.
Afinal, é possível atualmente questionar: até que ponto a produção de conteúdo considerada alternativa, em vez de contestar, não está reforçando e até mesmo ajudando a manter um padrão de ideias e ações semelhantes ao hegemônico? A força dos coletivos de mídia é inegável, uma vez que a produção de conteúdo alternativo foge do controle direto das mídias tradicionais, sendo capaz de lançar novos olhares sobre conteúdos ignorados ou evitados. Entretanto, é preciso estar atento ao esvaziamento de debates importantes apropriados por grandes mídias em detrimento das lutas das minorias. Já passou da hora de “desligarmos o telão”.
A coluna Observatório de Mídia é atualizada quinzenalmente às quintas-feiras. Leia, opine, compartilhe e curta. Use a hashtag #observatorionossaciencia. Estamos no Facebook (nossaciencia), Twitter (nossaciencia), Instagram (nossaciencia) e temos email (redacao@nossaciencia.com.br).
O próximo texto será publicado no dia 15 de outubro
JOII – Grupo de pesquisa em Jornalismo, Inovação e Igualdade da Universidade Federal do Piauí
Ana Karolina Carvalho e Juliana Teixeira
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