Racializar a política para fortalecer a democracia Diversidades

segunda-feira, 28 setembro 2020
Em uma sociedade onde o racismo é estrutural, pessoas racializadas ocuparem espaços políticos é condição imprescindível para a efetivação da justiça social, da cidadania e da soberania popular. Arte: Alice Andrade.

A jornalista e pesquisadora Alice Andrade reflete sobre a importância de pessoas racializadas e comprometidas com pautas democráticas ocuparem o cenário político brasileiro.

Por Alice Andrade.

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2019, realizada a partir do critério da autodeclaração, 42,7% dos brasileiros e brasileiras se declararam como brancos, 46,8% como pardos, 9,4% como pretos e 1,1% como amarelos ou indígenas. Se somarmos os três últimos indicadores, temos mais da metade da população composta por pessoas racializadas. Contudo, há quem diga que façamos parte de um grupo de “minorias”. E há quem nos faça acreditar que espaços legislativos majoritariamente brancos nos representam.

Na semana passada, a pesquisadora Andrielle Mendes refletiu nesta coluna, em um texto inspirador, sobre o desafio da autopublicação para mulheres racializadas. Estimulada por ela, penso que muitas dessas mulheres enfrentam sim percalços significativos para publicar, mas também para escrever – e, ainda mais, para falar.

De acordo com uma lógica branca, eurocêntrica, patriarcal e colonial, o lugar social ocupado pelas mulheres racializadas não é o do dizer. Expressar-se, nesse contexto, é um ato de bravura e ruptura com uma lógica que insiste em reforçar nosso apagamento epistêmico e existencial. Lembro-me de quando comecei a frequentar a universidade e em cada intervenção que precisava fazer em aulas, eu precisava tomar nota. Sim, literalmente anotava o que ia dizer, para conferir se o que tinha para compartilhar era aceitável, ou se era melhor o silêncio. Geralmente escolhia a segunda opção. E mesmo assim, quando optava pela primeira, ao final de cada fala, tinha o hábito de pedir desculpas por “incomodar”.

Alice Andrade. Foto: Arquivo pessoal.

Até que um dia, ao dar as mãos a mulheres negras e indígenas a partir de leituras e convivência, percebi que não é necessário me desculpar por falar. Expresso-me, pois:

– Há muito a ser dito;

– Tantas vezes impediram os meus (e as minhas, principalmente) de falar;

– Há muitas palavras que nos embargam a voz e precisam sair;

– Se minha fala é incômoda, provavelmente estou atingindo meu objetivo de romper com lógicas de silenciamento impostas a mulheres como eu;

– Se o “fim do mundo” está próximo, nos termos de Ailton Krenak (2019), transformar meu tempo restante em palavras me parece uma forma de congelar quem sou – enquanto unidade, mas também enquanto parte de um todo.

Nessa busca pelo entendimento de que não posso permitir que interditem minha fala, e sim seguir o convite de bell hooks (2019) para “erguer a voz”, aprendi que mulheres negras e indígenas têm a resistência como modo de vida milenar. Neste ano, no qual teremos eleições municipais, lembro que a política é mais um dos ambientes nos quais precisamos resistir e insurgir para sermos ouvidas. Recordo do discurso da vereadora Marielle Franco, em 08 de março de 2018, quando disse: “Não serei interrompida, não aturo interrupção dos vereadores desta Casa, não aturarei de um cidadão que vem aqui e não sabe ouvir a posição de uma mulher eleita Presidente da Comissão da Mulher nesta Casa”. Marielle falou – e gritou, quando preciso – sobre a necessidade de priorizar lutas antirracista e antissexista no planejamento de políticas públicas para o alcance de uma sociedade mais justa. Embora sua vida tenha sido abreviada (e ainda hoje, questionamos: quem mandou matar Marielle e Anderson?), o seu legado segue germinando sementes de mulheres negras potentes na política.

Em uma sociedade na qual o racismo é uma questão estrutural, contaminando todas as esferas, é ainda mais importante termos a participação de pessoas racializadas na política, em especial as mulheres. Isso porque as ideias de pluralidade, justiça social, cidadania, igualdade e soberania popular – imprescindíveis para a democracia – passam diretamente pela ocupação de espaços políticos por pessoas negras, indígenas e integrantes de comunidades tradicionais.

É por isso que, nestas eleições municipais, é pertinente questionarmos: há candidatas e candidatos negros(as) e indígenas disputando o pleito? Se não, por quê? E o que podemos fazer para ampliar a presença desses corpos? Qual é o compromisso que meus possíveis candidatos têm com as pautas raciais e de gênero, imprescindíveis para a democracia? Em que perspectiva sou realmente representado(a) por quem se candidatou a me representar? Essa(s) pessoa(s) vai contribuir para a construção do projeto político-social que quero para a minha cidade?

Falar de pessoas racializadas no âmbito político brasileiro significa também olhar para o passado e a história recente. Composição: Alice Andrade.

Para a construção de uma sociedade que não seja atravessada pelo racismo, escolher candidatas e candidatos negros(as) e indígenas comprometidos(as) com essas pautas é um passo fundamental. Se a intenção é a construção de um mandato mais justo e igualitário, é basilar buscar eleger pessoas que lutam pelos direitos e vidas dos povos das florestas e das periferias, que defendam uma agenda antirracista, antissexista, anti-homofóbica e antiopressões, de modo geral. Este ano teremos o crescimento de candidaturas coletivas de mulheres racializadas, demonstrando a potência da união, solidariedade e da co-construção. Racializar a política, portanto, é fortalecer a democracia.

Falar de pessoas racializadas no âmbito político brasileiro significa olhar para o amanhã, mas também para o ontem e para o hoje. Por isso cito algumas figuras históricas e contemporâneas, como: Tereza de Benguela, Dandara de Palmares, Luiza Mahin, Mário Juruna, Antonieta de Barros, Abdias Nascimento, Benedita da Silva, Jurema Batista, Érica Malunguinho, Joênia Wapichana, Talíria Petrone e Marielle Franco. É importante lembrar que a dimensão política vai muito além da questão partidária, dizendo respeito aos modos de conviver, ser e estar no mundo em coletividade.

Nesse sentido, para finalizar esta breve reflexão, peço licença para uma homenagem que me brotou em versos inspirados pelas mulheres racializadas que resistem historicamente e ocupam a política brasileira. Peço licença – mas não mais desculpas, como antigamente –  pois cada vez que entregamos uma poesia a alguém, adentramos um pouco sua subjetividade. Com sua permissão, convido meus versos a caminharem no solo fértil das suas ideias, partilhar espaço com suas forças e inspirar suas escolhas.

 

SOMOS A NOSSA PRÓPRIA CURA

 

O meu sangue vem de um povo

Que foi muito maltratado

Em navios foram trazidos

Cada um foi sequestrado

Contra toda a vontade

Sem poder sentir saudade

Povo negro escravizado

 

O leite dos nossos seios

Não nutriu os nossos filhos

Alimentou Casa Grande

Seus corpos esbranquecidos

Os chicotes, hoje armas

Deixam nossa pele em brasa

E nosso amanhã banido

 

Mas que pensa que a história

Se resume apenas nisso

O povo negro resiste

Jamais se fez submisso

Houve muita resistência

Muita luta e consciência

Liberdade e compromisso

 

E no meio dessas lutas

Foram muitas as mulheres

Que enfrentaram a labuta

Sofrimento e intempéries

Alquatune e Mahin

Firmina e Dandara sim

E quantas mais enumeres

 

As irmãs originárias

Viram filhos dizimados

Em uma luta sumária

Viram homens “renomados”

Destruírem a cultura

Intervirem com censura

No seu solo tão amado

 

Mas o céu seguraram

Com sua sabedoria

Nunca as paralisaram

Foram a própria alforria

E plantaram a semente

Que brotou também na gente

Com milenar maestria

 

Ao longo de nossas vidas

Produzimos resistência

Na política ou nas artes

Nas favelas ou ciências

Veja as periferias

Dizem que somos minoria

Para apagar nossa potência

 

Para ocuparmos espaços

Trabalhamos muito mais

Nos quebramos em pedaços

Nossos jovens não têm paz

Mulheres racializadas

Muitas são subestimadas

Pelo racismo voraz

 

No meio desse caminho

Temos muita inspiração

Iorubá ou tupi

Nosso sangue é de milhão

Indígenas e africanas

Companheiras e hermanas

Cada uma dando a mão

 

No passado foi Tereza

Chefiou a resistência

Com toda sua firmeza

Demonstrou resiliência

Resistiu até a morte

Não se entregou à sorte

Da escravidão em vigência

 

E do ventre de Tereza

Foram muitas que nasceram

Resistindo à existência

Por aquelas que sucederam

Mulheres de força plena

Viram na vida uma arena

E nossas lutas conceberam

 

O que falar de Marielle

Que enfrentou a injustiça

De um parlamento branco

Denunciou toda milícia

E com seu Franco sonhar

Ainda nos faz lembrar

“Não serei interrompida”

 

Seu legado é semente

Nunca será esquecido

E inspira tanto a gente

A falar o impedido

Do seu solo foram tantas

Que nos enchem de esperanças

De um futuro mais bonito

 

Como ela, Malunguinho

Um exemplo de bravura

Érica é flor-de-Marielle

E no sistema abre fissura

Pois carrega em sua pele

Resistência que impele

Toda e qualquer censura

 

Wapichana nos ensina

Sobre ancestralidade

Cria do chão de Roraima

Nos motiva de verdade

A lutar contra injustiça

Com coragem tão maciça

De quem tem sororidade

 

Tais mulheres movimentam

Qualquer uma estrutura

Movem nossos corações

A baterem com bravura

E sabermos que a história

Do nosso povo tem glória

Somos nossa própria cura.

(Cordel de Alice Andrade)

 

REFERÊNCIAS:

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Cia das Letras, 2019.

HOOKS, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. São Paulo: Elefante, 2019.

Conheça o Brasil – População (cor ou raça)

https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18319-cor-ou-raca.html#:~:text=De%20acordo%20com%20dados%20da,1%25%20como%20amarelos%20ou%20ind%C3%ADgenas.

Discurso – Vereadora Marielle Franco

https://mail.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/discvot.nsf/5d50d39bd976391b83256536006a2502/cd266fdef87ea5fc8325824a006d079d?OpenDocument

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Leia a coluna anterior: Mulheres racializadas e o desafio da autopublicação.

“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom é um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.

Alice Andrade

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