A jornalista e pesquisadora Alice Andrade reflete sobre a importância de pessoas racializadas e comprometidas com pautas democráticas ocuparem o cenário político brasileiro.
Por Alice Andrade.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2019, realizada a partir do critério da autodeclaração, 42,7% dos brasileiros e brasileiras se declararam como brancos, 46,8% como pardos, 9,4% como pretos e 1,1% como amarelos ou indígenas. Se somarmos os três últimos indicadores, temos mais da metade da população composta por pessoas racializadas. Contudo, há quem diga que façamos parte de um grupo de “minorias”. E há quem nos faça acreditar que espaços legislativos majoritariamente brancos nos representam.
Na semana passada, a pesquisadora Andrielle Mendes refletiu nesta coluna, em um texto inspirador, sobre o desafio da autopublicação para mulheres racializadas. Estimulada por ela, penso que muitas dessas mulheres enfrentam sim percalços significativos para publicar, mas também para escrever – e, ainda mais, para falar.
De acordo com uma lógica branca, eurocêntrica, patriarcal e colonial, o lugar social ocupado pelas mulheres racializadas não é o do dizer. Expressar-se, nesse contexto, é um ato de bravura e ruptura com uma lógica que insiste em reforçar nosso apagamento epistêmico e existencial. Lembro-me de quando comecei a frequentar a universidade e em cada intervenção que precisava fazer em aulas, eu precisava tomar nota. Sim, literalmente anotava o que ia dizer, para conferir se o que tinha para compartilhar era aceitável, ou se era melhor o silêncio. Geralmente escolhia a segunda opção. E mesmo assim, quando optava pela primeira, ao final de cada fala, tinha o hábito de pedir desculpas por “incomodar”.
Até que um dia, ao dar as mãos a mulheres negras e indígenas a partir de leituras e convivência, percebi que não é necessário me desculpar por falar. Expresso-me, pois:
– Há muito a ser dito;
– Tantas vezes impediram os meus (e as minhas, principalmente) de falar;
– Há muitas palavras que nos embargam a voz e precisam sair;
– Se minha fala é incômoda, provavelmente estou atingindo meu objetivo de romper com lógicas de silenciamento impostas a mulheres como eu;
– Se o “fim do mundo” está próximo, nos termos de Ailton Krenak (2019), transformar meu tempo restante em palavras me parece uma forma de congelar quem sou – enquanto unidade, mas também enquanto parte de um todo.
Nessa busca pelo entendimento de que não posso permitir que interditem minha fala, e sim seguir o convite de bell hooks (2019) para “erguer a voz”, aprendi que mulheres negras e indígenas têm a resistência como modo de vida milenar. Neste ano, no qual teremos eleições municipais, lembro que a política é mais um dos ambientes nos quais precisamos resistir e insurgir para sermos ouvidas. Recordo do discurso da vereadora Marielle Franco, em 08 de março de 2018, quando disse: “Não serei interrompida, não aturo interrupção dos vereadores desta Casa, não aturarei de um cidadão que vem aqui e não sabe ouvir a posição de uma mulher eleita Presidente da Comissão da Mulher nesta Casa”. Marielle falou – e gritou, quando preciso – sobre a necessidade de priorizar lutas antirracista e antissexista no planejamento de políticas públicas para o alcance de uma sociedade mais justa. Embora sua vida tenha sido abreviada (e ainda hoje, questionamos: quem mandou matar Marielle e Anderson?), o seu legado segue germinando sementes de mulheres negras potentes na política.
Em uma sociedade na qual o racismo é uma questão estrutural, contaminando todas as esferas, é ainda mais importante termos a participação de pessoas racializadas na política, em especial as mulheres. Isso porque as ideias de pluralidade, justiça social, cidadania, igualdade e soberania popular – imprescindíveis para a democracia – passam diretamente pela ocupação de espaços políticos por pessoas negras, indígenas e integrantes de comunidades tradicionais.
É por isso que, nestas eleições municipais, é pertinente questionarmos: há candidatas e candidatos negros(as) e indígenas disputando o pleito? Se não, por quê? E o que podemos fazer para ampliar a presença desses corpos? Qual é o compromisso que meus possíveis candidatos têm com as pautas raciais e de gênero, imprescindíveis para a democracia? Em que perspectiva sou realmente representado(a) por quem se candidatou a me representar? Essa(s) pessoa(s) vai contribuir para a construção do projeto político-social que quero para a minha cidade?
Para a construção de uma sociedade que não seja atravessada pelo racismo, escolher candidatas e candidatos negros(as) e indígenas comprometidos(as) com essas pautas é um passo fundamental. Se a intenção é a construção de um mandato mais justo e igualitário, é basilar buscar eleger pessoas que lutam pelos direitos e vidas dos povos das florestas e das periferias, que defendam uma agenda antirracista, antissexista, anti-homofóbica e antiopressões, de modo geral. Este ano teremos o crescimento de candidaturas coletivas de mulheres racializadas, demonstrando a potência da união, solidariedade e da co-construção. Racializar a política, portanto, é fortalecer a democracia.
Falar de pessoas racializadas no âmbito político brasileiro significa olhar para o amanhã, mas também para o ontem e para o hoje. Por isso cito algumas figuras históricas e contemporâneas, como: Tereza de Benguela, Dandara de Palmares, Luiza Mahin, Mário Juruna, Antonieta de Barros, Abdias Nascimento, Benedita da Silva, Jurema Batista, Érica Malunguinho, Joênia Wapichana, Talíria Petrone e Marielle Franco. É importante lembrar que a dimensão política vai muito além da questão partidária, dizendo respeito aos modos de conviver, ser e estar no mundo em coletividade.
Nesse sentido, para finalizar esta breve reflexão, peço licença para uma homenagem que me brotou em versos inspirados pelas mulheres racializadas que resistem historicamente e ocupam a política brasileira. Peço licença – mas não mais desculpas, como antigamente – pois cada vez que entregamos uma poesia a alguém, adentramos um pouco sua subjetividade. Com sua permissão, convido meus versos a caminharem no solo fértil das suas ideias, partilhar espaço com suas forças e inspirar suas escolhas.
SOMOS A NOSSA PRÓPRIA CURA
O meu sangue vem de um povo
Que foi muito maltratado
Em navios foram trazidos
Cada um foi sequestrado
Contra toda a vontade
Sem poder sentir saudade
Povo negro escravizado
O leite dos nossos seios
Não nutriu os nossos filhos
Alimentou Casa Grande
Seus corpos esbranquecidos
Os chicotes, hoje armas
Deixam nossa pele em brasa
E nosso amanhã banido
Mas que pensa que a história
Se resume apenas nisso
O povo negro resiste
Jamais se fez submisso
Houve muita resistência
Muita luta e consciência
Liberdade e compromisso
E no meio dessas lutas
Foram muitas as mulheres
Que enfrentaram a labuta
Sofrimento e intempéries
Alquatune e Mahin
Firmina e Dandara sim
E quantas mais enumeres
As irmãs originárias
Viram filhos dizimados
Em uma luta sumária
Viram homens “renomados”
Destruírem a cultura
Intervirem com censura
No seu solo tão amado
Mas o céu seguraram
Com sua sabedoria
Nunca as paralisaram
Foram a própria alforria
E plantaram a semente
Que brotou também na gente
Com milenar maestria
Ao longo de nossas vidas
Produzimos resistência
Na política ou nas artes
Nas favelas ou ciências
Veja as periferias
Dizem que somos minoria
Para apagar nossa potência
Para ocuparmos espaços
Trabalhamos muito mais
Nos quebramos em pedaços
Nossos jovens não têm paz
Mulheres racializadas
Muitas são subestimadas
Pelo racismo voraz
No meio desse caminho
Temos muita inspiração
Iorubá ou tupi
Nosso sangue é de milhão
Indígenas e africanas
Companheiras e hermanas
Cada uma dando a mão
No passado foi Tereza
Chefiou a resistência
Com toda sua firmeza
Demonstrou resiliência
Resistiu até a morte
Não se entregou à sorte
Da escravidão em vigência
E do ventre de Tereza
Foram muitas que nasceram
Resistindo à existência
Por aquelas que sucederam
Mulheres de força plena
Viram na vida uma arena
E nossas lutas conceberam
O que falar de Marielle
Que enfrentou a injustiça
De um parlamento branco
Denunciou toda milícia
E com seu Franco sonhar
Ainda nos faz lembrar
“Não serei interrompida”
Seu legado é semente
Nunca será esquecido
E inspira tanto a gente
A falar o impedido
Do seu solo foram tantas
Que nos enchem de esperanças
De um futuro mais bonito
Como ela, Malunguinho
Um exemplo de bravura
Érica é flor-de-Marielle
E no sistema abre fissura
Pois carrega em sua pele
Resistência que impele
Toda e qualquer censura
Wapichana nos ensina
Sobre ancestralidade
Cria do chão de Roraima
Nos motiva de verdade
A lutar contra injustiça
Com coragem tão maciça
De quem tem sororidade
Tais mulheres movimentam
Qualquer uma estrutura
Movem nossos corações
A baterem com bravura
E sabermos que a história
Do nosso povo tem glória
Somos nossa própria cura.
(Cordel de Alice Andrade)
REFERÊNCIAS:
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Cia das Letras, 2019.
HOOKS, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. São Paulo: Elefante, 2019.
Conheça o Brasil – População (cor ou raça)
Discurso – Vereadora Marielle Franco
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Leia a coluna anterior: Mulheres racializadas e o desafio da autopublicação.
“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom é um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.
Alice Andrade
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