A história do novo estudo, realizado na UFRN, que revelou detalhes sobre a síndrome que afeta crianças infectadas durante a gravidez
Há cinco anos atrás, acontecia um dos piores surtos de nascimentos de malformações que o nosso país já presenciou. De repente, dezenas de crianças com microcefalia começaram a nascer em diversas cidades do nordeste como Campina Grande, Recife e Natal. Na época, eu já trabalhava no Instituto do Cérebro da UFRN e lá realizava experimentos para estudar como o sistema nervoso se forma em embriões. Mas estes nascimentos eram um total mistério. Nós sabíamos que as crianças estavam nascendo com a cabeça pequena, mas não sabíamos nada sobre o cérebro.
Foi então que fui procurar o Dr. Manuel Moreira Neto, no Centro de Diagnóstico de Imagens do Hospital Onofre Lopes. Manuel naquele ponto, em outubro de 2015, já tinha realizado o exame de tomografia computadorizada de dezenas de pacientes com microcefalia, em um intervalo de pouco mais de dois meses. Foi então a primeira vez que vi o que estava acontecendo com o cérebro destas crianças. Era claramente um quadro de infecção, e não uma microcefalia causada por um defeito genético. Isso porque havia sinais de lesões, como acúmulos de cristais de cálcio que acontecem quando muitas células morrem de uma só vez. Mas havia um padrão nas lesões, e ele não era parecido com as causas de microcefalia mais comuns na época, o citomegalovírus e a toxoplasmose. Só alguns meses depois foi estabelecido que a causa daquele padrão era a infecção congênita pelo vírus zika. Eu, Manuel e sua equipe publicamos um artigo descrevendo este padrão. Mas não tínhamos a menor ideia de quais eram as consequências daquilo que estávamos vendo para a vida destas crianças.
Em meados de 2016, eu estava dando uma palestra na reitoria da UFRN. Na plateia, estavam as Dras. Nívia Arrais, Claudia Maia e Mylena Bezerra, do Hospital de Pediatria, também da UFRN. Elas são responsáveis, junto com outros profissionais, pelo serviço de ambulatório que acompanha o desenvolvimento clínico destas crianças. Era uma oportunidade perfeita para aprender, com as pessoas que estavam na linha de frente, sobre as consequências das lesões cerebrais. Após a palestra, acabamos marcando uma visita para conversarmos sobre possíveis colaborações. Para esta reunião, convidei meu grande amigo Claudio Queiroz, um especialista em epilepsias. Uma vez no Hosped, vimos que eles estavam gerando longas planilhas com todas as informações dos pacientes. Nós fomos convidados a ir todas as semanas passar uma manhã por lá no ambulatório de microcefalias, e para essa tarefa convidamos o aluno Antonio Jhones Rocha. Foi uma imersão incrível conhecer as crianças e suas famílias. Os dados ali levantados dão pano pra manga para muitos anos de pesquisas.
Também lá, conhecemos a neuropediatra, Dra. Áurea Nogueira de Melo. Áurea já estava coletando registros de eletroencefalografia (EEG) das crianças naquela época. Durante o exame de EEG, são colocados eletrodos presos com adesivo na pele da cabeça e este equipamento capta variações na atividade elétrica global que está acontecendo lá dentro, no cérebro. É como se estivéssemos ouvindo uma conversa atrás da parede, dá pra ouvir os sons, mas o que ouvimos é o somatório de todos os sons da sala. Não dá para distinguir quem entre as muitas pessoas está falando, ou se o aparelho de som está na frente ou atrás deles. Mas agora imaginem a dificuldade de fazer o registro de um recém-nascido ou criança pequena, a conversa já não é muito alta lá dentro, é um cérebro ainda se desenvolvendo. Fica ainda mais difícil se as paredes forem de uma casa pequena, como a cabeça destes pacientes. O objetivo desse registro então era saber o quão atrapalhada estava essa conversa dos neurônios. Mas apesar de todas estas dificuldades, os registros de Áurea e sua equipe são muito bons! Agora poderíamos analisar a função cerebral e compará-la a sua forma.
Claudio é acostumado a analisar sinais de registros com eletrodos dentro do cérebro. Mas os registros de EEG destas crianças eram um universo totalmente novo. Passamos longas horas aprendendo com Áurea sobre o que estávamos vendo. Ainda pedimos ajuda a Dra. Patricia Sousa, que é a especialista em EEG que atende as crianças do Maranhão, no projeto Ninar. Com toda essa informação em mãos, Claudio desenvolveu funções matemáticas para que o computador detecte automaticamente cada um dos sinais neurais que achávamos interessantes. Assim, conseguimos quantificar quando certas ondas apareciam e em quais crianças.
Dentre as ondas interessantes, estão as espículas. Estas ondas aparecem em pacientes com epilepsias. As epilepsias são grandes surtos de atividade cerebral descontrolada. Mesmo quando estão fora destes surtos, os pacientes apresentam espículas, e elas são mais facilmente vistas quando o paciente está dormindo. As crianças com microcefalia por zika apresentam espículas, mas não todas. E as crianças que apresentam espículas são exatamente aquelas que foram diagnosticadas com epilepsia no exame clínico com a Áurea. Isso por si é um fato intrigante. Por que umas crianças desenvolvem epilepsias e outras não? Será que umas tem mais espículas do que outras?
Foi aí que resolvemos voltar para os exames que revelam a forma do cérebro. Descobrimos que se as crianças apresentam calcificações em certas partes do cérebro, como o tálamo, tem mais chance de desenvolver epilepsias. Apesar de todas as crianças terem malformação da região anterior do cérebro, o prosencéfalo, nem todas apresentam as regiões mais caudais, como o tronco encefálico e o cerebelo, malformadas. Porém, todas as crianças neste grupo que tem as regiões mais caudais malformadas desenvolveram também epilepsia. Mas até aqui a análise nos dizia o impacto de ter ou não uma malformação. Mas será que o grau da malformação é importante? Para responder essa pergunta, precisávamos dar números a estas malformações.
É aí que entra na história o Galtieri Medeiros. Galtieri é técnico em radiologia e trabalha junto com o Dr. Manuel operando a tomografia computadorizada e a ressonância magnética. Galtieri também é fera na análise das imagens e realizou a reconstrução tridimensional das regiões mais anterior do cérebro, o prosencéfalo, e das mais caudais, o tronco encefálico e o cerebelo (vejam no vídeo o prosencéfalo em vermelho, o tronco encefálico em azul e o cerebelo em amarelo). Cruzando estes dados com os do EEG, observamos que as crianças que apresentam ondas típicas de epilepsia, como as espículas, possuem um volume cerebral menor. E que quanto menor o seu cérebro mais anterior, o prosencéfalo, mais espículas elas apresentam. Assim, o grau da malformação causada pelo zika influencia o desenvolvimento de epilepsias e também a quantidade de ondas típicas deste transtorno.
Nós ainda decidimos olhar para mais uma onda importante, os fusos do sono, que detectamos no EEG. Os fusos do sono são uma onda gerada dentro do prosencéfalo quando certos neurônios que nos mantém despertos silenciam. Esta atividade típica do sono é importante para o nosso processo de aprendizado. Quando temos um dia rico em novos aprendizados produzimos mais fusos do sono. Se inibirmos os fusos do sono em um camundongo após aprender uma tarefa, ele não consolida a memória. Assim, é importante olhar para os fusos do sono para termos pistas sobre o potencial do paciente se desenvolver cognitivamente. No grupo de crianças estudados aqui, apenas 25% apresentavam fusos do sono. E se elas tiverem epilepsia, a chance de apresentarem fusos é ainda menor. Assim, o tratamento de epilepsia nestes pacientes pode ser essencial para o seu desenvolvimento.
Dentre todas as crianças que foram infectadas pelo vírus zika durante a vida intrauterina, existe uma diversidade grande de consequências cerebrais. Estas incluem desde crianças que desenvolveram microcefalia, por perda de volume cerebral, até aquelas que nascem com o tamanho do cérebro normal, mas apresentam pequenas lesões. Dentre as crianças com microcefalia, existem aquelas com diferentes graus de comprometimento. Nosso trabalho mostra que este grau é importante para o desenvolvimento de epilepsias e o desenvolvimento de fusos do sono. Nós sugerimos que a ponta mais grave deste espectro de possíveis malformações é caracterizada pela perda de volume do prosencéfalo, espalhamento da malformação na direção de estruturas mais caudais, acompanhadas do desenvolvimento de epilepsias e perda dos fusos do sono. É importante salientar aqui que nossos achados não mostram que estas características causam epilepsia, elas ocorrem em conjunto com epilepsias. Para estudar a causalidade são precisos experimentos em que testamos a interferência em um destes fatores. Será que ao tratar epilepsias conseguimos recuperar os fusos do sono?
Os achados do artigo ilustram a importância da assistência médica provida pelo SUS a estes pacientes. Falhas no fornecimento de drogas para o tratamento de epilepsias, como a detectada aqui no RN, podem ter consequências drásticas para o desenvolvimento destas crianças. Precisamos de mais pesquisas para saber se estratégias de tratamento às epilepsias podem ser benéficas para o desenvolvimento de fusos e assim, para o desenvolvimento cognitivo. Mas para isso é preciso uma ciência e um SUS fortes. O atual desmantelamento da ciência nacional pode parecer uma questão exclusiva dos ambientes acadêmicos, mas é especialmente sentida pelas camadas mais vulneráveis de nossa sociedade.
Reconstrução tridimensional do cérebro feita a partir de exame de tomografia computadorizada
Referência:
Sequerra, EB; Rocha, AJ; Medeiros, GOC; Neto, MM; Maia, CRS; Arrais, NMR; Bezerra, M; Jeronimo, SMB; Barros, AK; Sousa, OS; Nogueira de Melo, A; Queiroz, C (2020) Association between brain morphology and electrophysiological features in congenital zika vírus syndrome: a cross-sectional, observational study. eClinicalMedicine
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Eduardo Sequerra
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