Desenvolvimento tecnológico associado a populismo torna-se um perigo para a democracia porque possibilita manipulação em eleições
(Por Homero Costa)
O uso do termo tecnopopulismo é relativamente recente. Trata-se da junção entre tecnologia e o populismo. Historicamente, entre os anos 1930/1960, o populismo está associado à mistificação, manipulação política, satisfação de algumas demandas dos trabalhadores e demagogia – além da possibilidade de repressão estatal – como mostram, entre outros, Octávio Ianni e Francisco Weffort nos livros O colapso do populismo no Brasil (1968) e O populismo na política brasileira (1978), respectivamente. Ao analisar o populismo no Brasil, esses autores contextualizam, numa perspectiva mais ampla.
O tecnopopulismo surge em outro contexto, possibilitado pelo desenvolvimento tecnológico, em especial com o surgimento e a expansão da internet. Um dos estudos considerado pioneiro sobre o uso do termo é o artigo “Political parties and the challenge to democracy from steam-engines to tecno-populism” (Os partidos políticos e o desafio para a democracia: da máquina a vapor ao tecnopopulismo) de Arthur Lipow e Patrick Seyd, publicado em 1995 na revista New Political Science 17, n.2.
Eles analisam o crescimento nos anos 1990 de partidos considerados ‘antissistema’ e populistas num contexto de expansão e desenvolvimento tecnológico e tratam dos impactos da tecnologia, particularmente da internet, no sistema político, nos partidos e de forma mais ampla, nas democracias representativas.
Para eles, era inevitável que a revolução tecnológica, em especial da comunicação, simbolizada pela internet, teria impactos significativos nas instituições da democracia representativa, com o surgimento de uma nova cultura política.
O objetivo do artigo era analisar o que chamaram de “novos desafios para uma nova etapa da democracia”, articulando tecnologia e populismo, com o entendimento de que o desenvolvimento das novas tecnologias digitais colocavam em xeque as instituições tradicionais de representação política, como os partidos políticos.
Nos anos posteriores, diversos estudos foram publicados sobre o tema. Em 2017 foi no artigo “Populism and technocracy: opposites or complements?” (Populismo e tecnocracia: opostos ou complementos? ) de Christopher Bickerton e Carlos Invernizzi Acetti (Critical Review of International Social and Political Philosophy, vol. 20, n.2) analisam não apenas os efeitos da tecnologia, como da tecnocracia inseridos em contextos de governos populistas e afirmam que “Embora populismo e tecnocracia apareçam cada vez mais como os dois pólos organizadores da política nas democracias ocidentais contemporâneas, a natureza exata de sua relação não tem sido o foco de atenção sistemática”.
E é este o foco dos autores. Eles argumentam que embora populismo e tecnologia sejam termos que possam se contradizer (assim como as realidades políticas a que se referem) há uma complementaridade quando se trata de tecnopopulismo que se baseia em uma crítica a uma forma política específica – que eles chamam de ‘democracia partidária’ – que é um regime político baseado na “mediação de conflitos políticos por meio da instituição de partidos políticos e uma concepção processual de legitimidade política segundo a qual os resultados políticos são legítimos na medida em que é o produto de um conjunto de procedimentos democráticos que giram em torno dos princípios da deliberação parlamentar e da competição eleitoral”.
No caso do populismo, os partidos deixam de serem instituições utilizadas como instância de representação e da relação entre governantes e governados, substituídos pelas redes sociais. Nesse sentido, populismo se articula com tecnologia (e também com autocracia).
Em outro artigo, “Techno-populism’ as a new party family: the case of Five Star Movement and Podemos (Tecnopopulismo como uma nova família partidária: o caso do Movimento 5 Estrelas e Podemos”) publicado em 2018 na revista Contemporary Italian Politcs 2018 VOL. 10, Nº 2 usam o termo tecnopopulismo agora como uma nova família partidária, analisando mais especificamente os casos do Movimento 5 estrelas da Itália e Podemos da Espanha, afirmando que inicialmente eles foram rejeitados como movimentos de protesto, mas o seu significado é bem mais abrangente e apontam para transformações estruturais mais amplas nos sistemas políticos e partidários.
Para comprendê-los, analisam três noções dominantes na literatura: como partidos ‘antissistema’, ‘antiestablishment’ e ‘populistas’(citando diversos estudos sobre as respectivas denominações) e concluem que nenhum deles captura a sua originalidade, algo como combinação de “populista” e concepções ‘tecnocráticas’ de política e modos de apresentação, e defendem o uso do termo “tecnopopulismo” como uma nova família partidária, um ‘tipo ideal’ mais amplo de tecnopopulismo “que pode servir de base para uma nova agenda de pesquisa combinando trabalhos sobre tecnocracia, populismo e partidos políticos”.
O fato é que o tecnopopulismo se trata de um novo sistema dominado por algarismos e tecnologias como a Big Data.
Como se relaciona com eleições e democracia?
No livro Os engenheiros do caos (Editora Vestígio, 2019) o cientista político italiano Giuliano Da Empoli ao analisar o impulsionamento da onda populista em vários países (Itália, Estados Unidos, Brasil, Reino Unido, Hungria e Turquia) chama de ‘engenheiros do caos’ os tecnólogos, estrategistas, cientistas de dados e especialistas em big data que usam algoritmos em eleições, direcionando conteúdos, e usando as redes sociais, tornando possível a ascensão de líderes populistas de extrema-direita. O algoritmo é programado para oferecer ao usuário conteúdos que os leva a aderir a determinados candidatos e partidos “não importa que posição, razoável ou absurda, realista ou intergaláctica” desde que saiba como interpretar suas aspirações e principalmente o medo dos eleitores.
Ele analisa como as fake news, as teorias da conspiração e o uso de algoritmos estão sendo usados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições, cujas campanhas se tornam cada vez mais o que ele chama de “verdadeiras guerras entre softwares”.
Para ele, uma das facetas do mundo tecnopopulista é o de privilegiar valores ou concepções de mundo em detrimento do conhecimento, ou seja, governos tecnopopulistas se relacionam com seus seguidores pelas redes sociais e não mais pelos partidos, usados apenas para viabilizar candidaturas e uma de suas principais características, além da manipulação e uso de dados, é o desprezo pelo saber, pela ciência, pelos acadêmicos, enfim, pelo conhecimento de uma maneira geral.
Assim, nas eleições são usados dados dos eleitores e técnicas de marketing aperfeiçoadas com as novas tecnologias, como a expansão das redes sociais, ampliadas com o desenvolvimento da internet. Saliente-se que esses dados no mais das vezes são negociados por empresas que têm arquivos de eleitores (idade, gênero, nível de renda etc.) especialmente em períodos eleitorais. São especializadas não apenas em venda de dados como o seu uso como propaganda, direcionando segundo a conveniência de quem contrata seus serviços. E assim inundam as redes sociais com a versão dos fatos que se quer emplacar.
Procedendo desta forma tornam a disputa eleitoral desigual, manipulada, colocando em xeque a própria democracia porque desvirtua o processo eleitoral, com o uso, por exemplo, de fakenews (notícias falsas) que nas eleições presidenciais mais recentes nos Estados Unidos (novembro de 2016) e no Brasil (outubro de 2018), por exemplo, tiveram um papel fundamental na desqualificação dos respectivos adversários dos candidatos vencedores.
Nos Estados Unidos, como mostra Britanny Kaiser no livro “Manipulados: Como a Cambridge Analytica e o Facebook invadiram a privacidade de milhões e botaram a democracia em xeque” (Rio de Janeiro, HaperCollins, 2020) descrevem com detalhes como a empresa disponibilizou dados de milhões de pessoas para a campanha vitoriosa de Donald Trump (Ela foi diretora de desenvolvimento de negócios da Cambridge Analytica e participou ativamente desse processo).
Com os dados, mensagens eram direcionadas não apenas para seus potenciais eleitores, como também para os adversários, no caso da eleição de novembro de 2016 nos Estados Unidos, de Hillary Clinton, com uma profusão de mentiras e incentivo para que não fossem votar.
Nos Estados Unidos, a principal ferramenta foi o SMS, no Brasil, o WhatsApp, cuja estimativa é de em torno de 120 milhões de usuários. O país perde apenas para a Índia com estimados 400 milhões de usuários.
Em relação ao WhatsApp e as mentiras utilizadas contra adversários políticos, é muito difícil determinar sua origem e controlar seu fluxo em grupos, entre outros aspectos porque o conteúdo é criptografado. É possível localizar o computador (IP), mas é difícil porque para isso é preciso autorização judicial e às vezes o acesso é negado, com a alegação de proteção à privacidade.
Isso tem consequências. O uso de mentiras é corriqueiro e se insere no que se tem chamado de pós-verdade, que também é uma característica do tecnopopulismo, no qual a veracidade dos fatos se transformou em algo arbitrário e relegado a segundo plano. O mesmo ocorre com a criação de “bolhas” fechadas, com discurso único e uma avalanche de desinformação, impulsionadas não apenas por partidários e amadores, como por profissionais, usando recursos do marketing.
Outro aspecto relevante do tecnopopulismo é que não apenas limita a participação como tem a possibilidade de estímulo ao ódio. Wesley S. T. Guerra no artigo O tecnopopulismo e ódio nas redes sociais publicado no dia 22 de agosto de 2020, afirma que o tecnopopulismo não popularizou a participação democrática, mas sim o ódio “cada dia está mais presente” e que “fazem da internet uma terra sem lei e um ponto de encontro de todas as perversidades humanas”.
Fernando Gabeira no artigo Os caminhos do tecnopopulismo, publicado no jornal O Estado de S. Paulo, no dia 7 de agosto de 2020, se refere à relação entre tecnopopulismo e a imprensa profissional no Brasil: “Eles a incluem no sistema decadente que pretendem destruir. Consideram-na um lixo desprezível e articulam sua comunicação por meio das redes sociais e pequenos veículos que possam comprar com sua verba publicitária. A tática é insultá-la sempre que possível, produzir fatos e oportunidades negativas que possam despertar sua indignação, imperando em suas páginas e telas pela crítica que provocam”.
Sobre a máquina do ódio, a jornalista Patrícia Campos de Mello no livro “A maquina do ódio: notas de uma repórter sobre fake news e violência digital” (Editora Companhia das Letras, 2020) descreve com detalhes como, a partir de uma matéria publicada em outubro de 2018 no jornal Folha de S. Paulo sobre disparos em massas no Whatsapp, financiada por empresários, burlando a legislação em vigor e em favor do então candidato Jair Bolsonaro, ela sofreu um gigantesco linchamento virtual de milícias digitais, como também críticas e desqualificação pessoal e profissional do próprio presidente e seus filhos. Recebeu milhares de mensagens ofensivas no Facebook, Twitter e no Instagram e teve de fechar todas as suas contas nas redes sociais.
O jornal inclusive contratou um segurança para protegê-la e ela diz: “já cobri o conflito na Líbia em Sirte, no front contra o Estado Islâmico, fiz coberturas da guerra na Síria, no Iraque e no Afeganistão e nunca tive guarda-costas. Mas é importante salientar que ela também recebeu muitos apoios, solidariedade de órgãos de imprensa, nacional e internacional, jornalistas, políticos, intelectuais etc.
Giselle Beiguelman, em sua coluna Ouvir Imagens, na Rádio USP, se refere à forma como assédio e ódio na internet, crimes como difamação, injúrias, homofobia ou racismo, são frequentes nas redes sociais, e o ódio aparece como “estratégia comuns de um tecnopopulismo que se vale dos recursos on-line e das diretrizes de comunidade das maiores redes sociais e plataformas, como o Twitter, o Facebook, o Instagram e o YouTube”.
E ilustra com dois exemplos de como as redes sociais nesse contexto podem contribuir para a disseminação do ódio. Um exemplo citado por ela é o filme polonês Rede de ódio, dirigido por Jan Komasa. O protagonista é um jovem de uma cidade do interior da Polônia que vai estudar Direito em Varsóvia e o filme inicia com a sua expulsão da faculdade, acusado de plágio e ele, por saber utilizar muito bem a tecnologia e os seus mecanismos, vai trabalhar numa agência especializada em manipulação da opinião pública por meio de ações nas redes sociais.
Ressentido e ambicioso ajuda a construir uma narrativa de ódio e intolerância contra um candidato à Prefeitura de Varsóvia, que defendia pautas de respeito à diversidade de gênero e racial e por isso passa a ser atacado pelos extremistas (de direita) por ser gay e defender o que esses radicais chamavam de ‘islamização do país’.
O fim é trágico: a forma como a contrapropaganda é feita, o uso das redes sociais com ataques e desqualificação do candidato tem sua eficácia quando ele é assassinado por um extremista num comício.
Como diz Giselle Beiguelman “o filme retrata os recursos utilizados para manipular informações como perfis falsos, participação de robôs e profissionais que incitam à violência”.
Outro exemplo cotado por ela foi a mobilização de extremistas (de direita) e religiosos contra o aborto realizado na menina de 10 anos, que engravidou após anos de violência sexual e abuso, violentada desde os 6 anos por um tio “Essa história monstruosa teve ainda um capítulo mais dantesco: a invasão das redes sociais por pessoas que conclamavam o público a protestar no hospital em que estava internada, revelando sua identidade, o que fere o Estatuto da Criança e do Adolescente, e também a do médico”.
Enfim, o desenvolvimento tecnológico associado a populismo torna-se um perigo para a democracia porque possibilita manipulação em eleições, com sofisticados mecanismos tecnológicos, a apropriação dos fluxos de informação, com desprezam a democracia e a põe em risco.
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Referências
Techno-populism’ as a new party family: the case of the Five Star Movement and Podemos
O tecnopopulismo e o ódio nas redes sociais
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Homero de Oliveira Costa é Professor Titular (Ciência Política) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Homero de Oliveira Costa
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