O principal produto das elites brasileiras são desigualdades sociais.
Por Joana Mercedes*.
“Se é para o bem de todos e felicidade geral da Nação, estou pronto! Digam ao povo que fico”. Essas foram as palavras proferidas, no dia 9 de janeiro de 1822, pelo então príncipe regente, o português Pedro de Alcântara. O Dia do Fico, movimento histórico que resultou na permanência de D. Pedro I no Brasil. Apesar de ter descumprido as ordens da corte portuguesa, esse movimento foi provocado pela elite brasileira da época, temendo que o povo brasileiro reivindicasse a independência através de uma revolução popular.
Com a chegada da família real e com a sua fixação no Rio de Janeiro, o país deixa de ser uma colônia portuguesa e passa a ser um Reino Unido. Contudo, após cinco anos, com o fim da era napoleônica (1815), ocorreu uma revolução em Portugal, a Revolução do Porto ou Revolução Liberal (1820), promovida pela burguesia portuguesa, defendendo princípios liberais, exigindo que a sede do reino português fosse em Portugal e não no Brasil. Com a adoção de uma nova Constituição, o rei D. João VI passou a ter medo de perder o trono, voltando para Lisboa e deixando como príncipe regente do Brasil o seu filho. Mas a corte de Lisboa não aprovou essas medidas, pois tinha interesse que o monopólio comercial fosse restabelecido, demonstrando para a elite brasileira o desejo de recolonizar o país. Portugal começa a pressionar D. Pedro, esperando o seu retorno para as terras portuguesas.
A elite brasileira apresentou uma carta contendo uma lista com aproximadamente 8 mil assinaturas, solicitando a permanência de D. Pedro I no país. O Dia do Fico, é representado em nossa história como um dos acontecimentos que promoveu a libertação política do Brasil frente à dominação portuguesa.
A permanência do príncipe em terras brasileiras culminaria, mais tarde, na Independência do Brasil, processo histórico de separação entre Brasil e Portugal. A elite brasileira almejava que isso ocorresse de maneira pacífica, para que permanecessem seus privilégios de classe, como a permanência de mão de obra escravista. Temiam dois acontecimentos. O primeiro é que o Brasil realmente voltasse a ser uma colônia portuguesa, o que dificultaria a liberdade nas tratativas comerciais, pois com a chegada da família real no Rio de Janeiro ocorreu a abertura dos portos, facilitando o comércio. O segundo temor é que acontecesse uma revolução popular, como ocorrera em quase toda América Latina, já que os países que conseguiram a independência através da revolução popular não se tornaram uma monarquia, mas uma república, abolindo a escravidão. Para essa elite, composta por membros da aristocracia e representantes do comércio, as concretizações desses acontecimentos eram inadmissíveis, pois gerariam prejuízo nos lucros.
Existe uma frase icônica do Rei D. João VI: “Pedro, se o Brasil se separar de Portugal, antes seja para ti, que me hás de respeitar, do que para algum desses aventureiros”. O soberano português referia-se a líderes políticos como Simón Bolívar e José de San Martín, que lideraram movimentos que fomentaram a libertação da América Latina.
O restante da história já conhecemos: em 7 de setembro de 1822, ao se aliviar de uma desarranjo intestinal no riacho Ipiranga, em São Paulo, D. Pedro I teria gritado: “Independência ou Morte!”. Tudo indica que o Brasil escolheu desde sempre, na realidade, a morte e a dependência, construindo uma sociedade à imagem e semelhança de sua classe dominante.
Em outubro de 2018, após sofrer um atentado em 6 de setembro, o candidato Jair Messias Bolsonaro foi eleito presidente do Brasil com a ajuda de grandes empresas, representantes de setores da elite conservadora e individualista. Mais uma vez, a elite brasileira (branca em sua maioria) decide e coloca no poder alguém que não representa o povo, nem gera representatividade. Fazendo uso dos seus recursos para financiar a campanha bolsonarista, que utilizou como principal ferramenta disparos em massa de informações falsas para grupos de WhatsApp, a elite colaborou com a internalização do opressor da população despossuída de recursos.
Podemos dizer que, junto com o atual presidente, também foram eleitos os mesmos ideais que a permanência de um membro da família real portuguesa no Brasil fortaleceu, procrastinando a proclamação da república e a abolição da escravatura. Ideais escravistas voltadas para o comércio e a exploração das minorias. Subjetividades paupérrimas de consciência social, sem qualquer resquício mínimo de humanidade. Um modo de entender e organizar o mundo que oprime, humilha e mata tudo que pode se aproximar da diversidade. Um ideal que exclui e determina as vidas “choráveis” na pandemia e fora dela. Ideais voltados para aniquilação dos povos originários, da população negra que passou pela escravidão e, hoje, passa pelo encarceramento de massa e a morte por mão de agentes do estado.
Segundo a filósofa Judith Butler, não podemos reconhecer apenas para certos corpos o direito de desejar uma vida vivível, não podemos chorar somente quando são essas as vidas que desaparecem. Se agirmos assim, há um problema e devemos nos perguntar por quê choramos a perda de vidas e a de outras não.
O fato de Bolsonaro ter sido eleito não exime que seu pensamento e seu agir sejam inconciliáveis com a democracia. Antes de se tornar presidente fez apologia à tortura, inclusive enaltecendo um torturador condenado pela justiça brasileira, Carlos Alberto Brilhante Ustra, no momento da votação de impeachment da presidente Dilma, que foi uma presa política e sofreu torturas durante a ditadura militar. Fez uso de argumentos racistas para defender o seu modelo ideal de família. Usou frases que discriminam homossexuais e ameaçou retirar direitos dos povos originários deste país, como se já existissem muitos e os existentes fossem garantidos.
A história se repete, com outros personagens. Mas o conjunto de estratégias e interesses são os mesmos. O antropólogo Darcy Ribeiro, em sua obra O povo brasileiro, mostra que existe uma tipologia de classes dominantes no Brasil, configurando dois corpos conflitantes, mas que se completam formando uma cúpula. O protetor de empresários, o patrono, cujo poder vem da riqueza, por meio da exploração econômica; e o patriciado, aqueles que detêm o prestígio, que desempenham cargos como o general, o deputado, o bispo, o líder sindical, entre outros. Obviamente, cada patrício enriquecido pretende ser patrão e cada patrão aspira às glórias de um mandato que lhe forneça, além de riqueza, o poder de determinar o destino alheio. Abaixo dessa cúpula estão as classes intermediárias, composta por pequenos oficiais, profissionais liberais, policiais, professores, etc. Todos estes, de acordo com o antropólogo, propensos a prestar homenagem às classes dominantes, na intenção de obterem vantagens.
Podemos compreender o que motivou essa elite a sustentar e fortalecer a campanha de Jair Bolsonaro e contribuir para que ocorresse a internalização do opressor nas classes menos favorecidas que, na esperança de obterem alguma vantagem, votaram no atual presidente.
Darcy Ribeiro afirma que, na década de 90, surgiu e se expandiu um corpo estranho nessa cúpula: a permanência gerencial das empresas estrangeiras, construindo um setor predominante das classes dominantes, empregando os tecnocratas mais competentes e controlando a mídia. O resultado foi a produção de conformidade na opinião pública, o que elegeu parlamentares e governantes orgânicos aos interesses da classe hegemônica.
Quando o autor fala em tecnocratas, refere-se a um modo de organização do da economia e do sistema político voltado para a racionalidade, a objetividade, destituído de questionamentos sobre a humanidade e o desenvolvimento social. São os pilares da educação bancária, desenvolvida com a única finalidade de prestar serviços ao mercado. Nesse cenário, é fácil perceber que a atual conjuntura deriva das dinâmicas históricas de uma elite desprovida de interesses sociais e coletivos, que controla e estagna toda uma sociedade na busca de interesses individuais e corporativos e monopoliza os recursos alegando que a baixa dos lucros e a queda das empresas geraria a diminuição de vagas de emprego, interditando qualquer discussão sobre as reais condições de despossessão da classe trabalhadoras e das minorias definidas pela raça, o gênero, a sexualidade e outros marcadores de diversidade subalternizada. Trata-se de manipulação desumana, quando se retrata a necessidade do trabalho para sobreviver com poucos recursos e sem perspectiva de desenvolvimento econômico.
Nesses dias de pandemia, mais precisamente no mês de julho, tivemos algumas manifestações, provocadas pela greve dos entregadores de aplicativos, trabalhadores que submetendo-se à exposição do novo coronavírus, bem como a riscos de acidentes em seus percursos de trabalho, estão totalmente degradados de direitos trabalhistas. Uma sociedade que não discute ou cria uma política de agregar direitos a esses entregadores demonstra não possuir qualquer senso de bem comum, enquanto os que se beneficiam do serviço de entregas em domicílio reforçam o privilégio de poderem permanecer em suas residências recebendo suas encomendas, sem nenhuma preocupação com a vida e a dignidade das pessoas que lhes proporcionam esse luxo. Essa crise só nos mostrou o desmonte do ideal da economia de compartilhamento, demonstrado, a princípio, como um grande avanço do mercado em meio ao sistema capitalista.
É nesse contexto que é estruturada a sociedade brasileira, na continuidade da exploração da mão de obra, antes escravista, depois assalariada e hoje vinculada a aplicativos. Acabamos por naturalizar e permitir esse tipo de exploração. Ficando essa exploração legitimada por um presidente que abertamente afronta os princípios básicos da solidariedade com os menos favorecidos e o senso de bem estar comum. O povo brasileiro não percebe: não estamos mais beirando o caos, estamos reconhecendo o próprio caos já estabelecido.
Não descrevo aqui o presidente Bolsonaro como o único responsável, mas aponto as várias expressões da elite como corresponsáveis por todo o sangue derramado, por toda vida oprimida e explorada no Brasil contemporâneo. É imprescindível que escrevamos uma outra história, uma história que não pode ser vivida e contada por poucos. Bolsonaro não precisou criar uma guerra armada para dizimar as minorias, como exemplificam as comunidades indígenas. Bolsonaro cruzou os braços para a covid-19, não gerando condições para essas minorias enfrentarem essa epidemia. Perdemos vidas choráveis, pois todo ser humano é presente na vida de alguém.
É preciso se libertar das várias elites existentes neste país para reduzir tamanhas desigualdade e esquecimento. É imprescindível aniquilar o sentimento de pertencimento a uma colônia que nos legou um racismo estrutural. Precisamos compreender que ainda é necessário balançar as nossas amarras, pois quanto maior é o nosso silêncio, mais estarrecedor é o som das nossas correntes e mais assombroso é o sangue deixado pelos nossos mortos.
*Joana Mercedes é graduada em Direito pela Universidade Potiguar (UnP), estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e pesquisadora do grupo de estudos Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom.
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Leia a coluna anterior: Não há humanidade fora da coletividade.
“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom é um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.
Joana Mercedes
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