Como formigas da tribo Camponotini acomodaram bactérias em seus ovos e mudaram os requisitos para a sua reprodução
Nós vivemos em uma sociedade em que o conceito de individualidade está sempre em discussão. Uns defendem com unhas e dentes o direito à propriedade privada e o cada-um-por-si, outros acham que o coletivo é que deve ser soberano. Para a biologia, todos os organismos vivos modernos são descendentes de indivíduos que conseguiram se replicar um dia. Assim, o conceito de indivíduo está ligado ao sucesso de uma entidade de se auto gerar (também chamado de autopoiese) e assim permanecer na história. Durante muitos anos, achamos que esta entidade autopoiética fossemos nós mesmos, esses corpos preenchidos de células com genoma de Homo sapiens. Mas não é bem assim, o reino animal está repleto de exemplos em que a unidade replicadora é muito mais coletiva. E as formigas ilustram especialmente bem este conceito.
Para começar, formigas são animais eusociais. Elas se organizam em castas e somente alguns animais de fato se envolvem na reprodução. Mas todos os indivíduos são importantes para esta reprodução, uma vez que a rainha não participa de outras funções básicas, como conseguir alimento, cultivar fungos e dar geléia real aos embriões. Assim, o indivíduo autopoiético é a colônia. Mas não para por aí. Em uma tribo de formigas, que contém diversas espécies, as Camponotini, o indivíduo autopoiético é composto também por uma bactéria.
O grupo de Ehab Abouheif estava estudando o desenvolvimento embrionário das Camponotini quando notou uma nuvem estranha na porção posterior do embrião. Esta nuvem aparecia quando os embriões eram tratados com corantes que se ligam ao DNA. Quando tratados com uma enzima que digere DNA, a mesma desaparece. Acontece que dentro dos embriões das Camponotini vive um simbionte, a bactéria Blochmannia. O acúmulo de Blochmannia no lado posterior do embrião é revelado quando o corante entremeia o DNA de todas estas bactérias, a tal nuvem. Curiosamente, esse acúmulo posterior é acompanhado por uma mudança na posição do embrião em relação ao ovo para mais anterior. Será que estas bactérias interferem com o desenvolvimento do animal?
No desenvolvimento embrionário de insetos, o óvulo recém fertilizado começa a replicar o núcleo, formando um sincício. Neste super citoplasma, cheio de núcleos, acontece nenhuma transcrição de RNAs. Ao invés de ler o genoma do embrião, os óvulos de insetos já possuem uma grande quantidade de RNAs maternos. E é a partir deles que acontece a maior parte da expressão gênica no começo da sua vida. Além da informação codificada em cada um destes RNAs maternos, os mesmos são distribuídos em certos polos do óvulo. Estas duas informações, a função do gene a partir da proteína e a sua posição de síntese, são importantes para definir características importantes como os eixos corporais, aonde fica a parte anterior, aonde fica o lado dorsal etc. Estas proteínas conseguem dar identidade àqueles núcleos e células aonde são expressas por serem proteínas regulatórias. Isso é, cada uma delas regula a expressão do RNA e de um grupo grande de outras proteínas, estas específicas de cada tipo celular e região do corpo. Só que a expressão destes genes a partir do RNA maternal é modificada pela presença da bactéria.
Uma parte importante do citoplasma deste sincício chama-se germoplasma. O germoplasma é a região onde as estruturas mais posteriores do embrião se formam, incluindo as células germinativas. Só que quando Ehab e seu grupo foram olhar para a distribuição dos RNAs dos genes envolvidos na especificação de células germinativas e C. floridanus, observaram os mesmos distribuídos em quatro zonas diferentes. Inclusive genes inesperados, como os de padronização do tórax e abdômem, estavam expressos ali. Quando trataram esta colônia com antibiótico, para matar a bactéria Blochmannia, eles viram que as quatro zonas ainda se formam, mas alguns genes desaparecem. Na ausência da bactéria, estes embriões desenvolvem malformações severas, como a perda da parte posterior do corpo, ou mais brandas, como a perda apenas das gônadas (onde são produzidos os gametas). Essa reorganização do embrião mostra como uma nova relação pode ser tão produtiva como novidade evolutiva como fenômenos de competição. Em especial, é importante para a bactéria ficar íntima do processo de diferenciação das células germinativas porque, uma vez dentro dos óvulos, a mesma garante sua transmissão para a próxima geração. A formiga se beneficia da sua capacidade em produzir aminoácidos e assim aumentar a qualidade da nutrição.
Ehab e os outros dois autores do artigo, Abdul Rafiqui e Arjuna Rajakumar, compararam embriões de diversas espécies dentro de Camponotini com formigas de um grupo externo, Lasius niger, que não possuí endosimbiontes no óvulo. Eles descobriram que todas as modificações não ocorreram de uma vez. Houve primeiro uma duplicação da zona do germoplasma. Após isso, a introdução da nova relação com Blochmannia fez com que os campos de diferenciação de cada região do corpo se deslocassem para mais anterior, inclusive o germoplasma. Durante este fenômeno, mais campos de expressão de genes de células germinativas se formaram.
Este é um belo exemplo de que o indivíduo biológico, aquele capaz de se auto gerar, pode ser um grupo de organismos. Isso é bom para quebrar o histórico de metáforas capitalistas e belicistas utilizadas em biologia, como “a sobrevivência do mais forte”. Nos faz pensar também se o modelo de sociedade que construímos, baseada em competição, exploração de muitos para benefício de poucos, está correta. A natureza nos mostra que as relações que deram certo são em sua maioria colaborativas.
Referências:
Ab. Matteen Rafiqi , Arjuna Rajakumar, Ehab Abouheif (2020) Origin and elaboration of a major evolutionary transition in individuality. Nature
Arjuna Rajakumar, Ab. Matteen Rafiqi, Ehab Abouheif (2020) Behind the paper: A long road to Major Transitions. Ecology & Evolution
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Eduardo Sequerra
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