Caracteriza a recessão democrática o declínio da participação em eleições e da confiança nas instituições e partidos políticos
(Por Homero Costa)
Dois relatórios de amplas pesquisas publicados este ano revelaram a existência de uma ‘onda de desdemocratização’ no mundo. Tratam-se das pesquisas na Alemanha “The Democracy Matrix as a Alternative to the Democracy Indices of Freedom House and Polity: Implementation of the Varieties-of-Democracy-Data” desenvolvida por Hans-Joachim Lauth, Oliver Schlenkrich and Lukas Lemm (Democracy Matrix Research Project Chair of Comparative Politics and German Government Institute of Political Science and Sociology – Universität Würzburg) e outra pesquisa do Freedom House (a Casa da Liberdade) dos Estados Unidos.
A primeira tinha por objetivo medir a qualidade da democracia em mais de 170 países de 1900 a 2017, usando alguns critérios como: liberdade política, igualdade e independência dos poderes e para isso criaram uma ferramenta chamada de A Democracia Matriz (The Democracy Matrix) utilizando um conjunto de itens que caracterizam a qualidade democrática, entre outros, a igualdade de oportunidade, participação, voto, direito de organização, direitos iguais aos cidadãos pelo Judiciário, parlamento e administração pública, liberdade de imprensa, fiscalização dos poderes etc.
A democracia é compreendida como “uma forma legal de governo que torna a autodeterminação possível para todos os cidadãos no sentido da soberania popular, garantindo sua participação no processo de decisão”.
Nesse sentido, as eleições, livres, justas e competitivas são fundamentais como garantidoras dos processos democráticos.
Os dados da pesquisa revelaram que de uma forma geral, considerando o largo período de análise e o total de países pesquisados, a existência de um processo que foi chamado de “desdemocratização”, ou seja, países que eram considerados democráticos deixaram de ser (alguns passando a ser qualificadas como de democracias deficientes) e crescendo regimes híbridos e autocracias.
A medição da qualidade das democracias, com as ferramentas explicitadas na metodologia permitiu examinar não apenas as democracias, como também regimes autocráticos, classificando os sistemas políticos democráticos, autocráticos (autocracias duras e autocracias moderadas), sistemas híbridos e democracias deficientes e funcionais.
Os parâmetros construídos permitiu analisar as forças e fraquezas democráticas encontradas em um país. Assim, por exemplo, eleições livres e justas podem ser realizadas regularmente num país, mas as normas do Estado de direito podem não estar asseguradas, ou processos eleitorais no qual as fake news tem papel relevante, desvirtuando o processo democrático. Nesse caso, esses países são considerados como de democracias deficientes.
Definiu-se também o que se chamou de ‘perfis democráticos’ que permitiu que algumas questões fossem investigadas em uma perspectiva comparativa, como por exemplo, se o princípio da liberdade política é mais enfatizado para o sistema político na Grã-Bretanha do que na Alemanha.
O relatório afirma que entre 1900 e 1974 houve avanços e retrocessos em relação à qualidade da democracia. Duas Guerras Mundiais, processos de democratização após a derrota nazi-fascista em 1945 (Alemanha, Japão, Itália etc), e também ditaduras como a de Franco na Espanha e Salazar em Portugal, ditadura militar na Grécia entre 1967 a 1974, permanência do colonialismo em vários países africanos até início dos anos 1970 (Guiné Bissau, Moçambique, Cabo Verde e Angola), ditaduras militares em diversos países na América Latina entre os anos 1960/1970 etc., mas o que a pesquisa revelou é que após 1974 houve um aumento das democracias, enquanto as ditaduras e autocracias diminuíram e que pela primeira vez aumentou o número de regimes híbridos (Nem ditaduras nem plenamente democráticos).
O número de autocracias atingiu o mínimo histórico em 2012 (52 países) e houve um aumento das democracias (88 países). No entanto, em 2017 houve uma diminuição das democracias, diminuindo, segundo os critérios da pesquisa, para 40, processo de queda que continua, aumentando os regimes autocráticos, os híbridos e as democracias deficientes (aqueles que mantêm as instituições funcionando, como partidos, parlamentos, realizam eleições etc., mas não são democráticos nos termos definidos na pesquisa.
Um dos países considerados como híbrido é a Índia (tida como a maior democracia do mundo, pela quantidade de eleitores). Híbrida porque se de um lado mantém eleições, houve aumento da corrupção governamental, repressão a protestos, violação de direitos humanos, conflitos com o Poder Judiciário, eleições sob suspeição etc.
Em 2017, 107 países perderam no quesito ‘qualidade democrática’ e 41 foram classificados como tendo regimes híbridos. A constatação é que houve quedas significativas de qualidade das democracias.
A segunda pesquisa é da Freedom House e os dados disponibilizados são de um estudo sobre democracias em declínio.
Segundo o Freedom House existe hoje uma “ruptura democrática impressionante” e afirma que está havendo um declínio das democracias no mundo: “Em todas as regiões a democracia está sendo atacada por líderes e grupos populistas que rejeitam o pluralismo e exigem um poder incontrolado para promover os interesses particulares de uma minoria”.
O foco da análise é a Europa e Ásia Central. Para eles, o colapso do consenso democrático tem sido mais visível na Europa Central e nos Bálcãs “que experimentaram os maiores ganhos após o fim da Guerra Fria”, mas que progressivamente foram perdendo, com a deterioração da democracia. E afirma que “Na região que se estende da Europa Central à Ásia Central, esta mudança acelerou os ataques à independência judicial, com ameaças contra a sociedade civil e os meios de comunicação social, além da manipulação das eleições e o esvaziamento dos parlamentos, que já não cumprem o seu papel como centros de debate político e supervisão do Executivo”.
De uma maneira geral, e não apenas nessas regiões, houve um crescimento de regimes autocráticos no qual os seus líderes alegam agirem de acordo com a vontade do povo, mas não passa de retórica , ou seja, fazem isso apenas para justificar a concentração de poder e se caracterizam por violações crescentes dos direitos políticos e das liberdades civis.
O resultado desse processo de desdemocratização é que a erosão democrática deixou os cidadãos vulneráveis aos abusos de poder e perda de direitos.
Entre muitos exemplos citados nas pesquisas, destaco a Polônia, no qual o partido Lei e Justiça (PIS) tem travado uma guerra contra o judiciário na tentativa de submetê-lo ao ditames do Executivo e no qual “o governo depois de dedicar seus primeiros anos a uma aquisição ilegal do Tribunal Constitucional do país e do conselho responsável por nomeações judiciais, começou a perseguir juízes individuais e que tal ataque é um acinte “a um princípio fundamental da democracia, que estabelece limites legais sobre o poder de um governo”.
Rupturas democráticas também ocorreram na Hungria no qual o governo do Primeiro-Ministro Viktor Orbán “abandonou qualquer pretensão de respeitar as instituições democráticas” assim como nos Bálcãs, com o abuso de poder empregadas por Aleksandar Vučić, na Sérvia e Milo Djukanović, em Montenegro.
E afirma que “A resiliência da democracia está intrinsecamente ligada à saúde de suas instituições, os componentes vitais que salvaguardam os direitos das pessoas da minoria e contribuem para a resolução dos desacordos políticos de forma pacífica e ordenada. Estas instituições nunca foram fortes na região que se estende da Europa Central até à Ásia Central; no Leste autoritário faltava-lhes mesmo a oportunidade de se desenvolverem, enquanto no Ocidente mais democrático eles se baseavam em um frágil consenso da elite e muitas vezes careciam de apoio social. Até 2019, cada uma das instituições avaliadas em Nations in Transit estavam sob ataque direto”.
Nesta pesquisa, para medir a qualidade das democracias são estabelecidos alguns índices e subíndices, entre eles a independência dos Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), uma administração pública imparcial, respeito aos direitos sociais, políticos e econômicos, enfim, o estabelecimento e implementação de regras democráticas.
Pelos critérios estabelecidos sobre os índices da qualidade das democracias, o Brasil é um dos países que retrocederam atingidos pela “onda de desdemocratização”, como entre outros, Filipinas, Hungria, Turquia e Sérvia.
Como se observa hoje, em diversos países a democracia está sob ameaça, com o crescimento da direita e da extrema direita na Áustria (Partido da Liberdade), Alemanha (Alternativa para a Alemanha), França, (Frente Nacional), Holanda, Dinamarca e Suécia, países de larga tradição democrática.
Os que esses partidos e movimentos defendem são pautas antidemocráticas como a expulsão de imigrantes, ataques aos direitos sociais e políticos, e são componentes comuns o racismo, a homofobia, os ataques à ciência, como expressa o questionamento da interferência humana sobre o aquecimento global.
No ranking da Freedom House, os Estados Unidos, em especial, com a vitória eleitoral de Donald Trump em 2016 (assumiu em 2017), o país deixou a categoria superior de democracias e é classificada como uma democracia deficiente.
Há diversos aspectos e fatores explicativos da crise das democracias e desse processo de desdemocratização, embora difíceis de serem resumidos em poucas palavras, parece inegável que se insere num contexto de uma globalização que resultou no impulsionamento do populismo (de direita e extrema-direita), no aprofundamento das desigualdades, que põe em xeque as democracias, assim como a má governança que resulta na perda de confiança nos atores políticos e também nas instituições, como os partidos políticos, que são explorados pelos líderes populistas (embora no discurso apareçam como antissistema, na realidade é parte integrante das classes dominantes e visam não ampliar, mas diminuir a participação popular nos processos de decisão).
Os dados das pesquisas referenciadas revelaram que existe hoje uma deterioração das democracias, um saldo negativo para o estado da democracia existente no mundo. Como diz David Runciman no livro Como a democracia chega ao fim (Editora Todavia, 2018) “o problema da democracia no século XXI é que suas virtudes positivas estão se esgotando” (p.228).
Alguns analistas se referem à existência de um processo de recessão democrática, como é o caso do cientista político norte-americano Larry Diamond no artigo Facing Up to the Democratic Recession (Enfrentando a recessão democrática) (Journal of Democracy – volume 26, Number 1 January 2015).
Para ele, o que caracteriza a recessão democrática são o declínio da participação em eleições (aumento das abstenções); o declínio da confiança nas instituições e nos partidos políticos; a crescente influência de instituições e órgãos de especialistas não eleitos nos processos eleitorais; o abismo entre as elites políticas e a população; o declínio na liberdade de expressão e a erosão das liberdades civis.
A conclusão das duas pesquisas citadas é a de que as democracias ainda não entraram em colapso, mas se constatou a existência de níveis decrescentes da qualidade das democracias, ou seja, a dinâmica da desdemocratização supera as melhorias de sua qualidade.
No entanto, embora tenha havido mais retrocessos do que avanços democráticos nos últimos anos, a ponto de se falar em uma “onda de desdemocratização”, não se pode apontar com segurança e certeza quais os possíveis desdobramentos desse processo: o que podemos e devemos esperar é que a atual tendência de desdemocratização possa ser contida, ou seja, que não haja uma onda crescente de autocratização e sim de retorno e aprofundamento da democracia.
Ao analisar a crise das democracias no mundo, Adam Przeworski no livro A crise da democracia (Editora Zahar, 2020) afirma que “a primeira lição que estamos aprendendo dessas experiências é que as instituições democráticas podem não oferecer as salvaguardas necessárias para impedir que sejam subvertidas por governantes devidamente eleitos, segundo normas constitucionais: a desconsolidação democrática não precisa envolver violações de constitucionalidade. Governos reacionários têm desfrutado de um apoio popular consistente”(p.20) o que pode tornar sua superação ainda mais complexa. E conclui afirmando que “É justo nos preocuparmos quando poucas pessoas declaram confiar em partidos políticos, parlamentos ou governos, quando a convicção de que a democracia é o melhor sistema de governo diminui no público em geral ou quando o anseio por líderes fortes ou por um governo de especialistas aumenta. Mas o poder profético das respostas sobre o colapso total da democracia é nenhum. Não devemos tirar conclusões a partir delas”(p.130).
Analisar, constatar e debater possíveis saídas pode ser o primeiro e fundamental passo a ser dado.
Referências
Dropping the democratic facade
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Tecnopopulismo, eleições e democracia
Homero de Oliveira Costa é Professor Titular (Ciência Política) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Homero de Oliveira Costa
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