Pesquisa revela semelhanças entre lágrimas de humanos, aves e répteis Pesquisa

quarta-feira, 9 setembro 2020

Estudo realizado por grupo da UFBA ganhou destaque na mídia nacional e internacional

Em Alice no país das Maravilhas, Lewis Carrol escreveu que “nada é conquistado com lágrimas”. Mas foi com lágrimas que uma pesquisa de um grupo da Universidade Federal da Bahia (UFBA) fez uma descoberta inédita, ganhando destaque nas páginas de veículos de notícias nacionais e internacionais: com emoção ou não, humanos, pássaros e répteis reservam muitas semelhanças nos fluidos lacrimais, que possuem importante papel na saúde dos olhos.

O estudo publicado no periódico Frontiers in Veterinary Science  inova por ter se debruçado numa tarefa difícil e pouco explorada: a composição das lágrimas em diferentes espécies. Para subsidiar a pesquisa, o destemido grupo de pesquisa da Escola de Medicina Veterinária e Zootecnia (Emevz) foi a campo coletar lágrimas de animais nem sempre dispostos a interagir com a equipe, temperamento comum à vida selvagem. Talvez por isso, os poucos trabalhos existentes na área envolviam animais mais dóceis nos estudos, a exemplo de mamíferos como cães, cavalos, macacos e camelo. O caráter inovador do paper chamou a atenção do The New York Times, CNN international, EurekkAlert, revista Galileu, G1, Correio, entre outros.

“Qual é a composição da lágrima?” e “o que mantém sua estabilidade?” foram questões que conduziram o estudo. “Cada espécie que estudávamos chamava atenção para outra espécie. Nós aperfeiçoamos a coleta e armazenamento de lágrimas, o que não é uma tarefa muito fácil. Acredito que essa é a razão de inexistir esse trabalho na literatura”, explica a professora da UFBA e doutora em oftalmologia veterinária Arianne Oriá. Ela foi a responsável por orientar as pesquisas das médicas veterinárias Ana Cláudia Raposo, durante o doutorado, e Ariane Lacerda, no mestrado, que abordaram o assunto durante o Programa de Pós-graduação em Ciência Animal nos Trópicos na UFBA. As três assinam o artigo junto com Ricardo Portela, Marcos Mendonça e Ali Masmali.

Coleta de lágrimas de uma coruja – Foto: Arianne Oriá

O paper Comparison of Electrolyte Composition and Crystallization Patterns in Bird and Reptile Tears (em tradução livre, comparação da composição de eletrólitos e padrões de cristalização em lágrimas de pássaros e répteis) explora lágrimas de araras, gaviões, corujas e uma espécie de papagaio, além de jabutis, jacarés e tartarugas marinhas. Nele, observa-se que o balanço iônico dos fluidos lacrimais de aves e répteis são semelhantes ao de humanos, com maiores valores de sódio e cloreto. Observa-se mais proteínas totais e ureia nas lágrimas de coruja e tartaruga marinha do que nos outros animais testados.

Pós-doutoranda em Ciência Animal nos Trópicos, Ana Claudia Raposo conta sobre os desafios da coleta das lágrimas, sobretudo no que se refere aos humores dos animais. “Fomos um dia depois do almoço coletar as lágrimas da arara. Descobrimos que a arara não aceita manejo a tarde. Ficam arredias”. Para ela, mais do que a dificuldade em fazer a coleta, o desafio era se adequar ao animal de acordo com suas especificidades, sobretudo referente ao contato com humanos. Ana Claudia ainda lembrou da colaboração dos profissionais das instituições que ajudavam na interação com os animais.

Por se muito viscosa, a coleta da tartaruga é feita com seringa – Foto: Arianne Oriá/Arquivo pessoal

Para coleta das lágrimas, foram utilizadas tiras de papeis absorventes esterilizadas. A técnica, porém, não pode ser aplicada na tartaruga, já que a lágrima do animal é extremamente viscosa. Arianne Oriá comparou a textura aos famosos brinquedos slimes. “Ela gruda na roupa, gruda em tudo, você puxa e volta, é extremamente viscosa. Não conseguimos utilizar tira de papel absorvente estéril que nós utilizamos nas outras espécies. Na tartaruga marinha foi necessário o uso de seringa”, diz.

Para conseguir a quantidade de lágrimas suficientes para viabilizar o estudo, a pesquisa contou com algumas parcerias, entre elas a do Centro de Triagem de Animais Silvestres (Cetas), do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do projeto Tamar. “Fizemos também um registro especial de liberação junto ao Ibama, então começamos a trabalhar”, explica Oriá.

Para coleta das lágrimas de jacarés, o destino foi um criatório que abriga cerca de 20 mil jacarés em Maceió. Já a coleta das lágrimas das aves foi feita no Centro de Triagem de Animais Silvestres; as tartarugas, no Projeto Tamar. “Cada um desses locais, com documentação de autorização especial. Cada uma com uma tramitação burocrática para trabalhar com os animais separadamente. Além da liberação do comitê de ética da UFBA”, lembra Oriá.

O jacaré permanece cerca de 1 hora e 30 minutos com o olho completamente aberto, sem piscar – Foto: Arianne Oriá/Arquivo pessoal

“Nessa avaliação, eu fiz algumas observações que chamaram atenção: o jacaré permanece cerca de 1 hora e 30 minutos com o olho completamente aberto, sem piscar. Com uma superfície ocular totalmente saudável”, conta Oriá. Aquilo intrigou a pesquisadora: “como uma espécie poderia ter um filme lacrimal tão estável?”. Parâmetros de normalidade e comparações entre espécies começaram então a ser explorados e os resultados divulgados. “Inexistiam esses dados na literatura, e o nosso grupo de pesquisa começou a evoluir em toda essa área na oftalmologia”, orgulha-se Oriá.O trabalho reflete inquietações que nasceram em 2009, ano em que Oriá ingressou na UFBA como professora. Ela conta que foi chamada após uma intensa briga entre dois jacarés no zoológico de Salvador, quando notou alterações oftálmicas nos animais. O atendimento dos pacientes, no entanto, revelou a falta de literatura de parâmetros de normalidade oftálmica da espécie. Iniciaram-se, assim, pesquisas que exploram esse mundo ainda pouco conhecido, cujos resultados podem refletir soluções a problemas humanos, a exemplo da secura dos olhos.

O trabalho envolveu ainda o Laboratório de Imunologia e Biologia Molecular do Instituto de Ciências da Saúde (ICS), com a colaboração do professor Ricardo Portela, que também assina o artigo. Para ter a tecnologia necessária às análises, Ana Cláudia desembarcou na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, para o doutorado sanduíche. As lágrimas também foram enviadas ao país – a primeira remessa, contudo, foi barrada pela alfândega americana, que, estranhando o conteúdo, o expediu de volta para o Brasil. O imbróglio resultou também na perda completa do material, pois não houve a reposição de gelo seco pela alfândega. Daqui, seu colegas correram para refazer a coleta e reenviar para Ana Cláudia que, na segunda tentativa, após contratar do próprio bolso uma empresa especializada em transporte de material biológico, conseguiu ter acesso as lágrimas para análise.

Grupo de pesquisa em oftalmologia veterinária – Foto: Arianne Oriá/arquivo pessoal

O grupo de pesquisa em oftalmologia veterinária também atende à comunidade no Hospital de Medicina Veterinária Professor Dr. Renato Rodenburg de Medeiros Netto (HOSPMEV) da UFBA, sendo um exemplo de união entre ensino, pesquisa e extensão. Temos serviço de atendimento à comunidade junto ao hospital de medicina veterinária. “Eu coordeno minha equipe de pós graduandos, que fazem atendimento de cães e gatos da rotina. E hoje, já com serviços de silvestres, fazemos atendimento para o centro de triagem de animais silvestres, projeto Tamar e zoológico de Salvador. Daí porque temos também essas outras espécies nas pesquisas”, observa Oriá.

A professora destaca que os trabalhos do grupo de pesquisa são alicerces para alcançar outros espaços de ciência e inovação. Porém, o trabalho do grupo só pode avançar por meio da valorização da pesquisa no país. Em sua visão, o desenvolvimento nacional está entrelaçado com a valorização dos pesquisadores.

Referências:

Frontiers in Veterinary Science

The New York Times

CNN internacional

EurekAlert

revista Galileu

G1

Correio

Fonte: Boletim Edgar Digital/UFBA

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