Não há humanidade fora da coletividade Diversidades

segunda-feira, 7 setembro 2020
É preciso reconectar a humanidade com a biodiversidade do mundo. Foto: Reprodução.

Ideias para (re)pensar os direitos humanos numa perspectiva decolonial.

Por Luan M. dos Santos Santana.

Há 72 anos, os países que colonizaram o restante do mundo se atentaram para a dimensão humana. Era uma sexta-feira de outono em Paris, na França. As lembranças do pós-guerra ainda dividiam as conversas no clima frio que tomava conta da “cidade luz” naquele 10 de dezembro de 1948. A data tornou-se um marco muito importante na luta pelos Direitos Humanos no mundo. Foi nesse dia que um grupo de 48 países votaram a favor da Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH.

Aqui não propomos nos ater ao texto ou suas propostas, mas a refletir sobre alguns aspectos cruciais para um pensamento crítico em torno da DUDH. O contexto histórico era de pós-guerra. A 2º Grande Guerra Mundial havia acabado há menos de 3 anos (1). Os horrores do holocausto já ganhavam notoriedade mundial e as marcas de destruição das bombas atômicas que atingiram Hiroshima e Nagasaki ainda eram fortemente sentidas no Japão e no Mundo. Naquela época os jornais, rádio e a televisão (recém-nascida) davam conta de massificar o caos e barbárie da guerra.

Celso Lafer (2) nos lembra que as guerras representam um espécie de a abolição do direito à vida, na medida em que elimina a proibição do homicídio. “Com efeito, a guerra converte a ação de matar outros seres humanos não apenas em algo permitido e legitimado, como também em algo comandado”. Assim, a vida humana pouco ou nada valia, diante do “objetivo maior” de vencer a guerra e manter o poder.

Era preciso mudar essa imagem. Os ganhadores da segunda guerra mundial (em especial os Estados Unidos) logo começam a buscar formas para promover a “paz e a democracia” no mundo. Os Direitos Humanos emergiram, nesse contexto, como elemento fundamental para superar os abalos ainda pulsantes da barbárie da guerra recém-encerrada.

Assim, mesmo sem um amplo debate mundial (menos de 10 países se envolveram de forma mais direta no esboço da Declaração), os direitos humanos foram universalizados. Para Maria Sueli Rodrigues, o que aconteceu na verdade não foi uma construção coletiva, mas uma imposição dos países dominantes da época (Informação verbal, fornecida em novembro de 2019). Dessa forma, a Declaração foi assinada em 1948 por 48 países e hoje agrega todos os 193 países que compõem a Organização das Nações Unidas – ONU.

Luan Matheus dos Santos Santana. Foto: Arquivo pessoal.

A filósofa política alemã, Hannah Arendt (3), de origem judaica, viveu os horrores do nazismo e teve sua nacionalidade usurpada e durante 14 anos viveu sem pátria. A privação de direitos e perseguição conduziu seu pensamento crítico, levando-a a afirmar que esses direitos embora universais e inalienáveis, mostram-se como algo que, na prática, não pode ser executados. Ela acredita que, apesar das tentativas humanitárias das organizações internacionais de formular novas declarações dos direitos humanos, “essa idéia transcende a atual esfera da lei internacional, que ainda funciona em termos de acordos e tratados recíprocos entre Estados soberanos; e, por enquanto, não existe uma esfera superior às nações”.

Arendt traz a dignidade humana como fundamento central daquilo que ela chama de “direito a ter direitos”. Assim, para ela, não se pode chamar de acidental essa falta de dignidade. São consequências. Como ela mesma ressalta, a humanidade do século XX buscou uma separação da natureza assim como no século XVIII se buscou uma separação da história. “A história e a natureza tornaram-se, ambas, alheias a nós, no sentido de que a essência do homem já não pode ser compreendida em termos de uma nem de outra”.

Assim, ao se desligar da natureza, a humanidade se posiciona como autossuficiente em um mundo que só existe pela sua biodiversidade. Os “iluminados”, “detentores do conhecimento” passam, assim, a abrir caminhos que autorizam a destruição das florestas para construção as fazendas de gado e commodities; que matam os rios para construção de usinas e despejo de esgotos; que exterminam a terra em busca de minérios. A lógica parece assim: se a natureza não é parte de mim, não há problema em matá-la. Da mesma forma, abre-se caminho para retirar dos povos originários o direito ao território, separando-os das suas comunidades, usurpando suas memórias, ancestralidades e culturas, sendo ainda colocados no lugar de “não-humanos”, portando, sem direitos.

Cientes do poder da coletividade, o que impulsionou essas separações foi a possibilidade do enfraquecimento. Para Arendt, “o homem pode perder todos os chamados Direitos do Homem sem perder a sua qualidade essencial de homem, sua dignidade humana. Só a perda da própria comunidade é que o expulsa da humanidade”.

Se fora da comunidade não há humanidade, os direitos humanos precisam se estruturar a partir de uma razão coletiva. Assim, ao propor a (Re)invenção dos Direitos Humanos, Joaquin Herrera Flores (4) propõe pensar esses direitos a partir das comunidades, dos povos periféricos e subalternizados. Portanto, como nos lembra Hélio Gallardo (5), o fundamento desses direitos não está nos códigos e nas leis, mas sim na luta; e sua eficácia se relaciona diretamente com a capacidade de mobilização social.

Na filosofia africana Ubuntu, “eu sou porque nós somos”. Foto: Reprodução.

Isso nos leva a defender que o fortalecimento das comunidades (sejam elas originárias, identitárias, de bairro, etc) sob a ótica da ação coletiva, se configura para um caminho capaz de materializar a essência na qual os direitos humanos se constituem: o respeito à dignidade humana. Mas para isso, o caminho talvez deva ser refeito.

Se no século XX a humanidade buscou uma separação da natureza, muito antes os povos de Abya Yala (a quem os colonizadores deram o nome de América Latina) sequer conceituavam natureza, por entender que todos (seres humanos, rios, plantas, animais) eram parte do mesmo sistema de interação com a Mãe Terra (Pachamama). Na filosofia indígena do “Bem Viver” a ideia de universo precisa ser substituída pela ideia de pluriverso, ou seja, por um mundo onde caibam vários mundos. É, portanto, uma filosofia de vida outra, da qual emergem modos de vida outros. José de Souza Silva (6) nos convida a refletir sobre o Bem Viver a partir de “outras formas de ser e sentir, pensar e fazer, produzir e consumir, comunicar-se e relacionar-se, viver e conviver”. Aqui a solidariedade, reciprocidade, complementaridade, respeito às diferenças, cuidado com o outro, são valores constitutivos da convivência.

Se no século XVIII a humanidade buscou uma separação da história, os povos africanos há séculos buscam nas sua ancestralidade a força para viver. Na filosofia africana Ubuntu, a coletividade é basilar e o eixo central pode ser resumido por: “eu sou porque nós somos”. O filósofo sul africano Mogobe B. Ramose (7), afirma que a  existência do africano no universo é inseparavelmente ancorada sobre ubuntu. Segundo ele, Ubuntu está relacionado a ideia da existência e a um ponto no qual a existência assume uma forma concreta ou um modo de ser. Ou seja, fala sobre aquilo somos. O ser coletivo.

Longe de querer propor neste texto um aprofundamento nessas relações, trago aqui possíveis inquietações, observações e ideias soltas para pensar os direitos humanos a partir de uma perspectiva decolonial, com foco nas comunidades e na coletividade dos sujeitos subalternizados. Todavia, não temos dúvida que esse é o caminho para ampliar nosso horizonte emancipatório, rompendo com as amarras colonialistas e contribuindo para a emergência de uma concepção crítica do direitos humanos.

*Luan Matheus dos Santos Santana é jornalista e mestrando em comunicação pela Universidade Federal do Piauí. Educomunicador popular atuando através da Plataforma de comunicação popular e colaborativa Ocorre Diário.

Referências

(1) SILVA, Daniel Neves. Declaração Universal dos Direitos Humanos.

(2) LAFER, Celso. A ONU e os direitos humanos. DOSSIÊ ONU E PAZ. Estud. av. vol.9 no.25 São Paulo Sept./Dec. 1995

(3) ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009

(4) HERRERA FLORES, Joaquín. A Reinvenção dos direitos humanos – Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.

(5) GALLARDO, H. Teoria crítica: matrizes e possibilidades de direitos humanos (1a. ed.). (P. Fernandes, Trad.). São Paulo, SP: Unesp, 2014.

(6) SILVA, J. de S. Agroecologia e a ética da inovação na agricultura. REDES (Universidade de Santa Cruz do Sul), v. 22, n. 2, p. 352-373. 2017.

(7) RAMOSE, Mogobe B. African Philosophy through Ubuntu. Harare: Mond Books, 1999, p. 49-66. Tradução para uso didático por Arnaldo Vasconcellos.

 

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“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom é um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.

Luan M. dos Santos Santana

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