Onde estão as fraquezas dos argumentos que sustentam a ação dos grupos fundamentalistas religiosos que começam a realizar atos violentos no Brasil?
Há duas semanas, assistimos um grupo de pessoas mal-intencionadas tentar impor suas crenças sobre as decisões de uma criança. Estas pessoas tentaram impedi-la de interromper uma gravidez resultante de estupro, o que é garantido por lei, ferindo seus direitos sexuais e reprodutivos. Para isso, utilizaram violência contra ela, sua família e profissionais de saúde, invadiram a sua privacidade, divulgaram sua identidade e localização. Estas ações foram crimes e seus autores devem ser julgados e punidos. Mas nem todos os defensores do discurso antiaborto partem para a violência. Vou então aqui, expor a hipocrisia do discurso, para que fique claro do que estamos falando.
O principal argumento utilizado pelos movimentos antiaborto é que o embrião tem direito à vida desde a concepção. De onde vem esta ideia? Ela é tão antiga quanto as religiões? Não. Os primeiros pensadores ocidentais aceitavam a ideia de que o embrião possuí uma fase inanimada, onde a alma não está presente, e outra posterior, em que seria já uma pessoa. Um bom recorte de como o embrião humano era visto pelos primeiros pensadores cristãos foi feito pelo ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar uma ação de inconstitucionalidade contra a Lei de Biossegurança, em 2008:
“Os filósofos da antiguidade e Santo Agostinho revelaram ópticas diversas. Aqueles acreditavam que o embrião ou o feto não se mostrava formado senão após quarenta dias da concepção no caso masculino e entre oitenta e noventa dias no caso feminino. O pensamento de Aristóteles derivava da teoria dos três estágios da vida: vegetal, animal e racional. O estágio vegetal era alcançado na concepção, o animal na animação – quando incorporada a alma – e o racional logo após o nascimento com vida. Essa teoria passou a ser aceita pelos primeiros pensadores cristãos. O debate teológico refletiu-se nos escritos de Santo Agostinho, que traçava distinção entre embryo inanimatus, quando não presente a alma, e embryo animatus, portanto o já animado.”
O aborto induzido não foi questionado judicialmente até o século XIX. O primeiro país a criar uma lei foi os EUA, em 1821, e o intuito era preservar as mulheres contra a ação de profissionais desqualificados. Foi então em dezembro de 1930 que o Papa Pio XI alterou a posição da igreja em relação ao início da vida da pessoa. Na encíclica “Casti Connubii” (sobre o casamento cristão), ele muda a posição, considerando agora qualquer aborto a retirada de uma vida inocente, independente do nível de desenvolvimento do feto ou as circunstâncias da família. Isso é, a ideia de que o embrião é uma pessoa, que inclusive pode receber o adjetivo de inocente, desde a concepção é muito recente.
No Brasil, a história das leis que regulam o aborto seguiu curso parecido. No código criminal do Império, em 1830, punia-se o aborto induzido por um terceiro sem consentimento da grávida. Isto é, o aborto induzido pela própria grávida ou com o seu consentimento não era visto como crime. O aborto induzido pela própria grávida passa a ser crime no código penal republicano de 1890. Neste, a pena já era atenuada para esconder desonra e havia a previsão de aborto legal no caso de ameaça à vida da gestante. Finalmente, o código penal de 1940 é que descreve a lei atual. Esta lei defende o direito à vida intrauterina, o aborto passa a ser um crime contra a vida. Já aqui, são criadas as duas exceções, o aborto em casos de estupro e quando há ameaça à vida da gestante. Mais recentemente, uma nova exceção foi criada, o aborto no caso de fetos anencéfalos. Assim, o código penal brasileiro, apesar de duro em relação a grande maioria dos casos de aborto, abre exceções que mostram que o valor moral da vida de um embrião/feto não é equivalente à vida de uma pessoa. Também em nossa história, a ideia de que o embrião já é um ser “assassinável” desde a concepção é relativamente recente. A fé religiosa, em especial aquela relacionada às religiões de origem cristã, não representou uma contradição à ideia de aborto durante a maior parte da sua história. Será então que é uma contradição falsa?
Existe uma confusão importante neste debate e ele reside na distinção entre “estar vivo” e “ser uma pessoa”. A vida é uma propriedade de células ou organismos multicelulares. Obviamente o zigoto, produto da fusão entre o óvulo e o espermatozoide, está vivo. Mas ele já é uma pessoa? Claro que o conceito de “pessoa” é relativo e difícil de definir em termos exatos. No entanto, algumas definições devem ser feitas para fins legais e médicos. Assim, vamos enumerar mal usos de conceitos biológicos na construção da ideia de que a pessoa começa na concepção. Aqui vão eles:
Eu escrevi em detalhes sobre cada uma destas críticas, vou deixar os links lá no fim. Mas a conclusão que quero tirar destes quatro pontos é, não existem elementos lógicos para defender que a vida da pessoa começa quando o embrião é um bolinho de células. Quanto às fases do feto anteriores à atividade cerebral, eu acho difícil defender que um ser que não sente dor e não pensa tenha direitos legais minimamente equivalentes aos da mulher. Na prática, um feto sem atividade cerebral é tanto uma pessoa quanto um feto anencéfalo. Assim, qualquer tentativa de imputar ao zigoto recém-fertilizado o status de “pessoa” é uma falácia.
Mas para completar a história, falta uma parte importante da discussão. Quais direitos fundamentais da mulher estamos ferindo ao considerar que o embrião é uma pessoa cedo demais? Esta lista é muito bem enumerada na ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental) 442, apresentada em 2017 e que afirma que a criminalização do aborto quebra preceitos constitucionais fundamentais e viola direitos. Este é um documento muito importante que está para ser votado no STF. Por isso, todos nós devemos saber exatamente o que ele diz. Em resumo, a ADPF 442 afirma que a criminalização do aborto:
Assim, vimos que a defesa à prática de aborto legal, com regras e critérios, não é uma contradição à fé religiosa. Esta é uma invenção moderna que não esteve presente na maior parte da história das religiões cristãs. Tampouco o argumento de que o zigoto recém-formado já é uma pessoa se sustenta em qualquer princípio biológico. Além disso, existe uma ADPF que, na minha visão de leigo, é muito bem fundamentada e irá mostrar que a criminalização do aborto é inconstitucional, pois viola direitos da mulher e princípios fundamentais. Mas sabemos que diversos interesses estão envolvidos e precisamos estar atentos.
Por fim, o julgamento da ADPF 442 não vai resolver tudo. Ela se refere apenas aos abortos até a décima segunda semana e, a meu ver, esta é uma posição comedida. Muitas mulheres descobrem que estão grávidas ao redor desta data e dificilmente estarão entre as beneficiárias. Esta data está muito distante do início da atividade cerebral, na vigésima quarta semana. Além disso, o que está escrito nas leis é muito diferente da prática. O caso desta criança grávida ilustrou muito bem como nossa sociedade está mergulhada em hipocrisia.
Referências
Partido Socialismo e Liberdade. Arguição de Preceito Fundamental 442/DF.
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Eduardo Sequerra
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