Como as mídias afetam a todos e a cada um – Parte 2 Artigos

quarta-feira, 12 agosto 2020
Foto: Nossa Ciência

O eixo que faz o mundo girar é a própria comunicação, suas formas e seus fluxos, seus suportes materiais e sua inserção na vida cotidiana de cada pessoa

(Por Josimey Costa da Silva)

Leia a primeira parte do artigo

Não existem sociedades sem comunicação, nem entre os insetos. Entre os humanos, Morin argumenta que comunicação implica afeto. Afeto é um conceito da filosofia de Spinoza, Deleuze e Guattari, que designa um estado da alma. Resumindo muito: para Spinoza, um afeto é uma mudança que acontece tanto no corpo como na mente. O mundo nos afeta e pode aumentar ou diminuir nossa vontade de agir. Nós nos constituímos no mundo de maneira afetiva em nosso agir comunicativo. O afeto está na base das emoções e dos sentimentos. A emoção, resultado mais imediato da afetação do mundo sobre nós, quando é interpretada, nomeada, ela vira sentimento, que é o resultado de uma maior abstração na elaboração dos nossos afetos, uma simbolização deles. Estar no mundo é se relacionar com ele de diversas formas, mas qualquer relação só pode se dar como um ato de comunicação. Nós nos comunicamos com o mundo e com aquilo que o constitui. Este é o nosso modo primário de relação com o nosso ambiente. E fazemos isso, esta relação comunicativa com o mundo, por meio do nosso corpo.

O corpo é um sistema fechado no sentido de que funciona a seu próprio modo e executa trocas improváveis com o ambiente à sua própria maneira, se queremos entendê-lo no sentido de Luhmann. Nosso corpo, para que seja corpo, não pode se confundir com o seu ambiente, mas também não pode prescindir dele. Para sobreviver, nosso corpo não é autônomo e precisa retirar os meios da sua sobrevivência do ambiente em que vive. Ou seja: nosso corpo é afetado por esse ambiente, que nos muda dentro de nossos próprios limites e em nossas próprias condições. Para entendermos isso melhor, pensemos na comida que consumimos e que só vira alimento na medida em que se transforma em reações físico-químicas internas próprias do nosso organismo. O que sobra é o que não podemos transformar em nosso, aquilo de que não podemos nos apropriar e, portanto, devolvemos ao ambiente. Assim também se dá com a informação que nos chega do mundo. Só é informação aquilo que nós processamos como afetação do mundo na forma de afetos e emoções nossos em direção a uma crescente abstração como operação mental também nossa. Nós simbolizamos a afetação do mundo e a transformamos em sentimentos, racionalidade e reações objetivas em direção a esse mundo. Essa é a nossa relação básica com o mundo e isso é comunicação: uma afetação como ato de tornar comum o que antes era separado, incomunicado, mas um comum nos próprios termos de cada participante do ato – se quisermos, como a tradução da ação do outro no afeto de cada um. Claro que não estou dizendo, com isso, que só nos afeta aquilo que admitimos, ou aceitamos, mas tudo o que de alguma forma podemos processar. Processar, neste caso, exclui destruir, que é o fim da afetação.

Então, neste primeiro momento, podemos dizer que só existimos no mundo e o mundo só existe para nós como um ato de comunicação. Esta comunicação só pode se dar por meio do nosso corpo. O que significa dizer que nossa materialidade corpórea é ao mesmo tempo condição de nosso fechamento sistêmico e de nossa abertura à alteridade. Nossa imanência e nossa transcendência. París afirma que a técnica humana tem substrato corporal. Para entender melhor, exemplifica com as relações entre hardware e software, que se dão inevitavelmente em complementaridade. Não se pode compreender o funcionamento de um se não se compreende como funciona o outro. Vivemos não somente em uma biosfera, pois somos animais sociais e nossa sobrevivência nos levou tanto a uma sociosfera como a uma tecnosfera, a dimensão em que os procedimentos codificados, replicáveis e aplicados a um fim determinado. Cada dimensão é em si mesma um mundo dentro do mundo geral.

O que importa agora é saber o que integra todas essas esferas em nossa existência singular, como seres que percebem o mundo de maneira consciente? O que integra todas essas dimensões do mundo em que vivemos na dimensão das nossas subjetividades? Como essas dimensões podem existir para cada um de nós como sujeitos que percebem e agem de forma particular nesse mundo? A resposta é a nossa capacidade de simbolizar, que nos permite criar um mundo de equivalência mental para o mundo material em que vivemos e atuamos. Nossa condição de animal symbolicu nos permite criar símbolos, esses equivalentes mentais arbitrários para tudo o que percebemos, tudo o que nos afeta. Os símbolos que criamos dão sentido ao mundo, à vida e a nós mesmos. É a partir de relações de comunicação, que se sofisticam cada vez mais com os processos simbólicos, que chegamos a sociedades enormemente complexas como as atuais. Tanto estas como as sociedades mais primitivas só existem porque se estruturam a partir de uma base de vínculos comunicativos.

Assim, vemos que o que importa realmente não são só os conteúdos que nos chegam por meio da comunicação e que vão compor nosso repertório de informações sobre o mundo. De fato, o eixo que faz o mundo girar é a própria comunicação, suas formas e seus fluxos, seus suportes materiais e sua inserção em nossa vida cotidiana. McLuhan vaticinou que o meio é a mensagem. Ele sabia que é a comunicação midiática que iria permitir que existamos nesse mundo, que iria formatar o modo como nós existimos e como nós atuamos sobre esse mundo. E mais: que no mundo da tecnociência, a mídia protagoniza e sincroniza todos os processos sociais que não são obrigatórios e alguns dos obrigatórios também.

Quando digo que a comunicação formata o modo como nós existimos no mundo, o uso da palavra “formatar” não é gratuito. Estou recorrendo a Flusser para entender que formatar, dar forma, tem a mesma origem da palavra “informar”, pôr na fôrma. Ou seja: a informação nos formata. E nos formata a partir do nosso próprio corpo, que é um conjunto com as nossas mentes. Flusser fala que os humanos desenvolveram, ao longo de sua história, gestos que correspondem a técnicas e equipamentos. Usávamos o corpo inteiro quando caçávamos; nas fábricas, usávamos as mãos; na comunicação digital, usamos os dedos. Em nosso mundo de máquinas eletro-eletrônicas, a circulação de informações tecnicamente controladas e comercialmente orientadas só foi aumentando como decurso histórico e nós fomos nos formatando para acompanhar as exigências de viver em uma tecnosfera heterodeterminante cada vez mais complexa e generalizada. Nosso comportamento foi mudando, nossa mente e nosso corpo também. Por exigências da técnica, fomos nos confinando em nosso próprio corpo sentado, tendendo à imobilidade, que fez sentar também nosso pensamento. Fomos nos confinando em nossa mente de um modo mais reativo que ativo. Fomos nos confinando em nossas casas. Evitamos o inferno que são os outros nos fechando em nossas próprias ideias, nossas bolhas de opinião. Então, nossas relações se liquefizeram, na perspetiva de Bauman. Se pensarmos assim, parece que a pandemia só tornou as coisas mais claras. Ela trouxe a perspectiva da morte como o assunto do dia-a-dia e não apenas como algo espetacular, sensacionalista; mas como uma fera que nos espreita na porta da frente de nossas casas.

Leia a terceira parte desta série de quatro artigos.

Leia a primeira parte do artigo

Referências

Cf. MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo – Necrose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990. (vol. II).

SPINOZA.  Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 1677/2010.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia 2. Vol.1. São Paulo: Editora 34,1995.

Cf. DAS NEVES, T. T.; DA SILVA, J. C. Coração sonoro: comunicação, afetos e sociabilidades maquínicas em festas de música eletrônica. Revista FAMECOS, v. 25, n. 3, p. ID29193, 23 ago. 2018.

Luhmann, Niklas. A improbabilidade da comunicação, Lisboa: Edições Vega, 2006.

PARÍS, Carlos. El animal cultural: biología e cultura en la realidad humana. Barcelona, Critica, 2000.

CASSIRER, Ernst. Antropologia filosófica: ensaio sobre o homem – introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Editora Cultrix, 1969.

FLUSSER, Vilem. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo, Cosac & Naify, 2007.

Josimey Costa da Silva é doutora em Ciências Sociais/Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e pós-doutora em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECOPÓS/UFRJ). É pesquisadora e docente nos programas de pós-graduação em Estudos da Mídia (PPGEM/UFRN) e em Ciências Sociais (PPGCS/UFRN). É membro do Grupo de Estudos Transdisciplinares em Comunicação e Cultura (Marginália/UFRN/CNPq), integrando a linha de pesquisa Comunicação urbana, corpo, estética e imagem. Também poeta e escritora de contos com diversas publicações.

Josimey Costa da Silva

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Site desenvolvido pela Interativa Digital