Com a pandemia, mães Yanomami não sabem a localização dos corpos dos seus bebês
Por Joana Mercedes
Desde do início da pandemia do novo coronavírus no Brasil, é vivenciado um drama: a dor de não poder se despedir, como de princípio e costume, dos familiares e amigos que estão falecendo nesse período. Entretanto, este direito ainda é exercido e mantido, apesar dos limites e restrições. Mas será que todos possuem as mesmas garantias?
Existe uma tragédia na mitologia grega que foi narrada por Sófocles. A obra desse autor inspira, até os tempos atuais, o que conhecemos como direito natural, no que se refere aos ritos fúnebres. Ainda hoje, nas universidades de direito, são discutidos os embasamentos e reflexões em torno desse escrito.
A tragédia grega, Antígona, conta a história de uma jovem que esteve em desespero, pois não teve concedido o direito de enterrar o corpo do irmão, Polinices, e precisou enfrentar as ordens do governante da época, Creonte. Polinices perdeu o direito aos ritos fúnebres por ser considerado um traidor. O jovem enfrentou o próprio irmão e durante um confronto corporal um mata o outro. Ambos mortos no mesmo instante, um como traidor e outro como herói. Etéocles lutava a favor de Tebas, pois era o governante antes de Creonte, preservado, assim, o direito a todos os rituais e pompa de herói. Entretanto, o mesmo não ocorrera com Polinices, que teve como castigo ser deixado para ser alimento para cães e aves. Os gregos acreditavam que para uma pessoa ser recebida por Hades, considerado o deus do submundo e dos mortos, precisaria receber todos os rituais fúnebres. A jovem enterra o irmão, contrariando as ordens de Creonte, sendo condenada, após esse feito, à morte. Quando o governante desiste da condenação, por intervenção externa, vai à procura dela, na torre em que a mantinha presa, e percebe que, ali, Antígona havia cometido suicídio. Nesse mesmo momento, depara-se com o próprio filho, que era noivo da jovem e que indignado pelo suicídio avança contra o pai, mas não o acerta e encrava a espada no próprio peito.
Trecho da obra Antígona, na tradução de Millôr Fernandes:
“Não creio que esse teu decreto tenha o poder de revogar as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis”.
A tragédia grega de Antígona nos elucida a necessidade de garantia do direito natural, por fazer parte, este, do direito dos homens, direito tido como universal, decorrente da natureza das coisas e que não deveria ser contestado por nenhuma autoridade. Esse direito natural é representado por princípios que não podem ser contrariados por nenhuma lei, por acreditarem, os juristas, que ele está acima do próprio texto normativo. Todavia, esses direitos nem sempre são garantidos.
É preciso ter discernimento que o respeito a esses rituais são imprescindíveis a qualquer pessoa que perde um ente representado pelo elo do afeto, seja um amigo ou familiar. Isto porque existe um abalo psicológico, pela ausência da pessoa querida e a necessidade que possuímos de nos despedir daquele ser. Essa despedida, em princípio, deve ser realizada de acordo com as tradições, crenças e vontades dos familiares e da pessoa falecida, pois o evento morte traz consequências, sejam elas individuais ou coletivas, podendo se caracterizar como de natureza jurídica ou social.
A jornalista Eliane Brum, em reportagem publicada pelo El País em 24 de junho de 2020 e intitulada “Mães Yanomami imploram pelos corpos de seus bebês”, nos relata o desespero de três mulheres pertencentes ao grupo de etnia Yanomami que foram retiradas, com os seus bebês, de sua aldeia, Auaris, e levadas a um hospital em Boa Vista, capital de Roraima. As crianças estavam com suspeita de pneumonia, mas ao chegarem ao hospital foram contaminadas pelo Covid-19 e vieram a óbito. A dor dessas mães vai além do falecimento dos filhos, pois ao receberem a notícia da morte deles tiveram também o conhecimento do desaparecimento dos corpos de seus bebês, não possuindo o direito de retornarem à sua aldeia, com os pequeninos corpos, para realizarem os rituais fúnebres tradicionais do povo Yanomami.
A jornalista explica que, apesar de Roraima ser o estado mais indígena no Brasil, não existe uma equipe de tradutores para realizar a comunicação entre a população dos povos originários. As mães não tiveram acesso à comunicação, evidenciando mais uma violação de direito, a transparência de atos administrativos, negando-lhes o direito à informação referente aos corpos dos seus filhos. Foi necessário a intervenção de uma liderança da comunidade para compreenderem o ocorrido. A informação à qual elas tiveram acesso foi que possivelmente os corpos teriam sidos enterrados no cemitério da cidade, algo inaceitável para a cultura delas.
Os Yanomami possuem um ritual próprio de cremação, que a antropologia compreende como endocanibalismo, buscando apagar completamente a dor da perda daquele ente, para não existir dois mortos, um em vida e um em morte. O ritual dos Yanomami ocorre com a cremação do corpo e de todos os pertences do membro falecido da tribo, após esse procedimento, as cinzas são misturadas a um purê de banana e consumida. O ritual pode durar anos, pois poderá se repetir o processo com as cinzas do mesmo Yanomami. Pessoas de outras aldeias são convidadas para a cerimônia. Eles acreditam que somente homens maus não possuem direito a esse ritual e que aquele membro do grupo que não recebe todos os ritos não poderá ser esquecidos pelos seus parentes queridos e não terá a alma livre para entrar na casa de Trovão, que eles acreditam ser o local para onde os homens bons podem permanecer após a morte.
Por mais que exista um protocolo de biossegurança, por medo do contágio, esses corpos precisam ser comunicados a seus familiares, estabelecendo a possibilidade de negociação sobre os ritos da cerimônia dos Yanomami. Todavia, o que fica caracterizado é a má vontade em tranquilizar e diminuir o desespero dessas mães. Por que essas mulheres não foram consultadas sobre como seria a cerimônia fúnebre do próprio filho?
“Quem é essa mulher que canta sempre esse estribilho? Só queria embalar meu filho […]”: este trecho da composição Angélica, de Chico Buarque, nos recorda um momento difícil da história do povo brasileiro, nas quais pessoas desapareciam e não era concebido o direito à informação sobre o que ocorrera com elas ou com os seus corpos. A dor da mãe que só queria velar o filho morto. Essa história se repete, esse crime e violência voltam a acontecer.
É preciso garantir a identidade dos povos originários, reconhece-los como entes de resistência. Não se trata de um mito, uma mitologia, uma “estória”, mas a triste realidade do descaso frente a dor da perda e retirada de um direito básico dessa população, o direito de crença e de ritualizar os seus mortos. Fica evidente o abuso, bem como a violência psicológica que essas mães e companheiros da tribo Yanomami estão passando. Fica evidente o racismo aos povos originários, pois hoje, em meio a democracia, é inconcebível esse tormento sofrido por essas mulheres Yanomami.
A matéria da Jornalista Eliane Brum não é apenas informativa, é uma denúncia ao desrespeito da garantia de um direito natural aos povos Yanomami. Demonstrando a necessidade de criação de políticas públicas que percebam e reconheçam as demandas das populações indígenas, não negligenciando a principal necessidade dessas comunidades que é o respeito e reconhecimento de suas identidades e a não invasão de seus territórios, de suas crenças e seus costumes.
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Leia a coluna anterior: O corre diário da ComunicAção: Comunicar-Sonhar-Fazer
“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom, um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.
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