Com argumentos frágeis, autoridades brasileiras começam a autorizar a reabertura do comércio de forma prematura
O Brasil ainda não conhece a real dimensão da covid-19, trabalha com subnotificação de casos, UTIs lotadas e uma curva de crescimento de infectados que indica que não atingimos (ainda) o pico desta que é a primeira onda do vírus no país. Entramos em quarentena após a Europa, e de forma ousada (e provavelmente precipitada) definimos voltar ao mesmo tempo em que muitos deles estão reabrindo seus comércios. Isso significa que nossa quarentena parcial foi mais curta e os seus efeitos serão menos efetivos do que os deles. Antes mesmo de flexibilizar a quarentena já tínhamos mais mortos que Espanha, Portugal e França. Imagine agora.
Os argumentos das autoridades para o relaxamento na quarentena foram os mais frágeis possíveis. Alegar estabilidade no número de mortos, por exemplo… Ou indicar que as UTIs não estão completamente lotadas. Ora, estamos lidando com uma contaminação que tem um comportamento matemático bem definido – ter hoje um nível de 70% de ocupação de leitos de UTI não significa exatamente nada. Não garante condição segura para reabertura de coisa alguma. Sabemos também que os números nos finais de semana e feriados diferem do seu resto. Assumir dois ou três dias seguidos como exemplo de tendência não tem significado matemático algum.
A quarentena serve para evitar que a contaminação com o vírus passe do limite e a rede pública de saúde (nosso velho e bom SUS) não sature, fazendo com que as pessoas morram sem assistência médica.
No entanto, muitos leitores ainda podem argumentar: Esta foi uma liberação parcial, com várias restrições. Não há com o que se preocupar.
Neste ponto eu recordo que dois meses atrás esta era uma gripezinha que mataria cinco ou sete mil pessoas em todo o mundo. No momento em que escrevo esta coluna (03 de junho) já são mais de 384 mil mortos, sendo quase 10% destes no Brasil. Já atingimos a marca de quatro mil infectados por dia no país e agora decidimos que é possível ir a shoppings, igrejas, praia, bar…
Vivemos tempos difíceis, em que um cidadão negro morre após longos nove minutos em que o peso de um policial comprime seu pescoço. Vivemos tempos difíceis em que o poder econômico joga o povo na rua, para lotar ônibus, metrô, pistas e avenidas de shoppings, e por longos e tenebrosos dias seja sufocado lenta e terrivelmente pela ação mortal e o peso descomunal da covid-19.
Para aqueles que achavam que encontraríamos um mundo novo no pós-quarentena, infelizmente há uma só constatação a fazer. O mundo continua o mesmo. O capitalismo sobreviveu, e se manterá a custa de milhões de vidas.
Porém, sempre é necessário lembrar que vidas negras importam, vidas anônimas importam. A luta contra a covid-19 é também uma luta contra o sistema.
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Leia o texto anterior: Eletricidade versus covid-19
Helinando Oliveira é Professor da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) desde 2004 e coordenador do Laboratório de Espectroscopia de Impedância e Materiais Orgânicos (LEIMO).
Helinando Oliveira
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