Como o viés racista daqueles que estudam e interpretam os dados sobre espécies humanas influencia a história contada sobre as nossas origens
Até meados do século 19, tudo o que sabíamos sobre hominídeos eram observações sobre os vivos, seres humanos e grandes macacos. Foi em 1856 que um estranho pedaço de crânio foi descoberto em uma caverna no vale de Neandertal, na Alemanha. Este crânio se parecia muito com um humano, mas não o suficiente. Ele era mais alongado para trás e possuía os ossos acima das órbitas oculares bastante protuberantes. Em 1857, dois anos antes da publicação da Origem das Espécies, foi anunciado ao mundo o primeiro hominídeo já extinto, o Homo neanderthalensis. Não estávamos mais sozinhos.
Alguns anos depois, o fóssil do primeiro Neanderthal foi examinado por um brilhante anatomista chamado Thomas Huxley. Huxley fazia parte do pequeno ciclo de pessoas com quem Darwin trocava informações e viria a se tornar um dos maiores divulgadores das ideias contidas no A Origem. Mas Huxley tinha seus vieses racistas. Para fazer sentido ao achado do Neanderthal, ele comparou esse crânio ao de humanos europeus, fósseis de Homo sapiens da Europa, grandes macacos e Aborígenes, como um grupo separado de humanos, selvagens. A partir de tais comparações, Huxley concluiu que o crânio de Aborígenes era mais primitivo do que o de europeus. Assim, o branco europeu colonizador do continente australiano era incapaz de ceder a ideia que aquele povo primitivo, sem agricultura ou animais domésticos (o que eram conclusões limitadas), fosse seu semelhante. Tal incapacidade foi suficiente para induzir em Huxley a ideia de que um crânio encontrado na Alemanha é mais semelhante com um crânio de um ser humano encontrado do outro lado do planeta do que aqueles dos seres humanos do mesmo local.
Muitos anos e muitos fósseis de hominídeos depois, descobrimos que não tivemos nossa origem no continente europeu. Os Homo sapiens tiveram sua origem na África e saíram para migrar por outros continentes. Sim, sofremos algumas modificações durante o tempo, por pressões seletivas. Mudamos de cor de pele, algumas características no desenho da face, adaptações a parasitas etc. Mas nossos antepassados andarilhos africanos já eram Homo sapiens. Os diferentes grupos que se espalharam pelo globo formaram diferentes etnias, diferentes culturas e passaram a contar diferentes histórias sobre as nossas origens. Talvez por isso, tem gente que ainda não se conformou com a ideia de que saímos todos da África.
No começo dos anos 90, uma dupla de antropólogos, Alan Thorne e Milford Wolpoff, propuseram a hipótese multiregional para a origem dos seres humanos. Segundo esta hipótese, os seres humanos surgiram em diferentes locais do globo. Foi a migração de pessoas então, que levou ao fluxo gênico necessário para unificar os seres humanos do planeta. Outra implicação importante da hipótese é que diferentes grupos podem ter se tornado humanos modernos em tempos diferentes, o que daria menos tempo para alguns chegarem ao desenvolvimento tecnológico, natural da espécie, segundo os princípios iluministas. Na época, muita gente achou que a hipótese não era convincente e provavelmente muitos se sentiram ofendidos. As evidências eram poucas realmente. Havia fósseis de hominídeos na Ásia, muito mais antigos que qualquer migração de seres humanos africanos. Poderiam estes ser ancestrais de asiáticos, ou até Aborígenes? A nossa capacidade de sequenciamento de DNA era pequena, sequenciávamos o DNA mitocondrial de humanos modernos a procura de uma Eva mitocondrial, mãe de toda a humanidade (nossas mitocôndrias vêm dos óvulos das nossas mães). A hipótese multiregional resistiu por uma década, mas sucumbiu aos avanços tecnológicos da virada do século.
Nos anos 2000 aconteceram duas grandes revoluções tecnológicas que contribuíram para o que sabemos sobre a origem dos hominídeos. A primeira, foi o aumento na nossa capacidade de sequenciamento de DNA e, por consequência, seu barateamento. Hoje em dia, conseguimos sequenciar o genoma de uma pessoa em horas. Muitas pessoas já tiveram seu genoma sequenciado, o que permite a sua comparação e reconstrução de árvores filogenéticas dentro de nossa espécie. A hipótese de que todos viemos da África foi fortalecida. Mas não viemos de uma Eva em um jardim do Éden africano. Somos o produto da interação entre diversas populações africanas, antes dos primeiros humanos deixarem o continente. A segunda revolução foi a recuperação do DNA de fósseis de hominídeos. Hoje em dia temos a sequência do genoma de Neanderthais, Homo florensis, Denisovenses, em diferentes locais e com diferentes idades. Esta segunda revolução nos trouxe uma grande surpresa, os primeiros humanos modernos tiveram encontros amorosos (ou não) com todos os outros hominídeos, e esses encontros estão registrados no nosso DNA!
Todos nós temos 50% do genoma de cada um dos nossos pais. E temos mais ou menos 25% do genoma de nossos avós (essa porcentagem pode variar mais de acordo com a loteria que acontece na meiose). Quando pensamos em ancestrais mais distantes, alguns deles podem simplesmente ter seus DNAs diluídos com o tempo e não aparecer mais nos nossos genomas. Mas com certeza cada pedaço do nosso DNA veio de um ancestral. Assim, os primeiros trabalhos mostraram que seres humanos europeus possuem entre 2 e 4% de seu DNA proveniente de Neanderthais, enquanto africanos não. Hoje em dia, existem serviços de sequenciamento de DNA que te informam as origens do seu genoma. Se você tem não sei quantos por cento de DNA cigano etc. Meu cunhado, Andre Breitman, que possuí ancestrais europeus, viu no relatório da empresa que possuí 244 pequenas sequencias de DNA provenientes de ancestrais Neanderthais seus. Muito legal, a história sendo recuperada com o auxílio da tecnologia.
Voltemos então ao discurso racista a respeito dos hominídeos. A história que se quer contar é que uma raça superior é moderna a mais tempo, ou mais moderna ou coisa parecida. Mas se logo essa raça, os brancos europeus, têm ancestrais de uma espécie estúpida de hominídeos, como manter o enredo? Será que esse DNA de Neanderthal nos faz mais idiotas? Será que esse DNA primitivo nos faz ter compulsão por beber leite em lives de internet? Bom, é importante lembrar aqui quem domina o enredo. A jornalista Angela Saini, em seu livro Superior: the return of race science elencou como em poucas matérias na imprensa o tratamento aos Neanderthais mudou:
Manchetes proclamaram que “nós não temos dado crédito suficiente aos Neanderthais” (Popular Science), que eles “eram espertos de mais para o seu próprio bem” (The Telegraph), que “humanos não eram mais espertos que Neanderthais” (Washington Post).
E a mídia brasileira acompanhou. “Um neandertal mais inteligente” dizia a manchete da Istoé. “Neandertais eram mais espertos que se pensava” trazia a manchete do Extra, mesmo sem ninguém ter chamado nossos primos hominídeos de espertos antes.
Um achado foi particularmente importante para essa mudança. Hoffman e colaboradores publicaram em 2018 a datação de pinturas em três cavernas espanholas que teriam, segundo eles, 60.000 anos. Isso seria 40.000 anos antes dos primeiros Homo sapiens chegarem à Europa e assim, por eliminação, só poderiam terem sido feitas por Neanderthais. Portanto, Neanderthais agora seriam capazes de produzir representações simbólicas, vulgo desenhos, uma prova de inteligência! Esse achado vem sendo amplamente discutido por outros grupos que fizeram suas próprias datações. Mas será que a inteligência dos Neanderthais é importante para entendermos a nossa própria? Claro que não. Não existe esse tal gene da inteligência. O fato de termos pequenas sequências de nucleotídeos de ancestrais hominídeos não tem qualquer influência sobre as nossas capacidades cognitivas. O problema é que uma vez que alguém se enrola em um enredo cheio de preconceitos, não consegue mais se livrar dele.
Uma análise mais recente encontrou traços de sequências Neanderthais em africanos também. Estas sequências são muito parecidas com as dos humanos fora da África, sugerindo que Homo sapiens com ancestrais Neanderthais migraram de volta para nosso continente de origem. E muitos outros dados interessantes virão. O problema não está nos dados, nos métodos ou na ciência. O problema está em quem controla a narrativa. Precisamos realmente universalizar o acesso à construção do enredo. Já vimos aqui que a ciência pode ser boa para filtrar dados mal feitos, mas é muito ruim em filtrar ideias, sobretudo quando elas chegam para a sociedade. Não basta um homem branco fazer o exercício anti argumentos racistas, como o que fiz aqui. Precisamos defender ações afirmativas que deem acesso à ciência. Afinal, no fim, o controle racista da narrativa científica quer justamente a manutenção da desigualdade social.
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Leia o texto anterior: Genes, desenvolvimento cerebral e racismo pós genômico
Eduardo Sequerra
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