Para a ciência ganhar, as pesquisadoras racializadas precisam deixar de perder Diversidades

segunda-feira, 25 maio 2020

Andrielle Mendes, doutoranda em Estudos da Mídia na UFRN, faz uma reflexão sobre a situação das mulheres brasileiras racializadas

De Andrielle Mendes

Quinta-feira, 13h23. Abro o Instagram para compartilhar a foto da mesa onde passo metade do dia criando a tese. A ideia era só compartilhar a foto do café e colocar na legenda: “é aqui onde eu passo minhas manhãs”. Mas se transformou num relato longo de como foi (e está sendo) desafiador aprovar (recentemente) um artigo num congresso nacional, articular e escrever uma tese, pensar este texto (e tantos outros), quando preciso fazer um bico no contraturno para sustentar o doutorado no meio dessa pandemia. Penso agora que aprovar o artigo no congresso não foi nem de longe o mais difícil. Difícil mesmo é saber como vou pagar a inscrição, que equivale a mais da metade do que recebo por mês.

Meu feed verde, cheio de fotos entre as plantas, espelha muito de quem eu sou, mas não retrata quase nada do que eu faço. Posso garantir que a vida de uma pesquisadora, de um pesquisador sem bolsa de pesquisa, é muito mais cinza do que o Instagram mostra. Minha grama pode parecer mais verde nas fotos (com filtro), mas não é porque eu tenha tempo, energia e disposição para regá-la diariamente; é só porque tem chovido mais nos últimos dias. E se não está fácil para mim, que não preciso me pré-ocupar com minha subsistência, não consigo nem imaginar como está sendo para milhões de mulheres racializadas, que precisam se pré-ocupar com o que vão comer no dia seguinte, nesse período de confinamento.

A pesquisadora Andrielle Mendes.

Penso que há uma razão superficialmente simples para que o número de mulheres vá diminuindo à medida que os cargos dentro (mas também fora) da universidade sobem. É que, diante delas, as escadas se transformam em muros. “Você só faz isso (estudar na universidade) se tiver condições”, foi o que um professor universitário disse a respeito de uma aluna que havia levado sua filha para a aula por não ter com quem deixar a criança. A questão é injustamente essa: muitas mulheres simplesmente – ou melhor, complexamente – não podem. Mas ainda assim tentam, embora nem todas consigam permanecer até o fim.

Uma pesquisa da Gênero e Número identificou que, embora as mulheres hoje sejam maioria em todos os níveis de ensino e também nas bolsas de iniciação científica, mestrado e pós-doutorado do CNPq – a principal agência estatal de fomento à pesquisa do país – e empatem com os homens nas bolsas de doutorado, são eles que continuam à frente na docência universitária, tanto na graduação quanto na pós-graduação, e chegam antes e muito mais numerosos nas bolsas de Produtividade em Pesquisa do CNPq, destinadas a cientistas que se destacam em suas áreas. É o que mostra Carolina de Assis, editora da Gênero e Número, ao refletir sobre os obstáculos presentes ao longo de toda a trajetória das mulheres, na Ciência e na Academia, que dificultam e atrasam o percurso delas nesse campo, quando não determina a desistência da carreira.

Para as mulheres negras (e as indígenas?), o caminho é ainda mais estreito e tortuoso, pois segundo dados do último Censo da Educação Superior, realizado em 2016, há pouco mais de 200 mulheres pretas com doutorado dando aula na pós-graduação. As mulheres pardas são pouco mais de 1 mil. As brancas, 10 mil. Outro atestado da exclusão das pessoas negras da ciência e da pesquisa brasileiras, segundo Carolina, é o fato de que, nos últimos cinco anos, a proporção de bolsistas do CNPq que se identificam como pretos e pardos não chega a 30% – isso em um país com 54% da população negra.

De acordo com Rivane Arantes, educadora e pesquisadora do SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia, a magnitude do problema do racismo no mundo contemporâneo – cada vez mais evidenciado na sua articulação com o patriarcado e o capitalismo, sistemas de exploração e de poder que, embora providos de lógicas próprias, produzem-se e se reproduzem mutuamente no cotidiano das relações e práticas sociais – tem cada vez mais colocado nas fronteiras da desumanização parcelas significativas de mulheres negras (de modo particular, e racializadas, de um modo geral).

As cotas foram um respiro no meio dessa asfixia que se chama ser racializado (e pobre) no Brasil (principalmente se você é mulher negra, parda ou indígena), que oxigenou o sonho de uma universidade multiétnica. Isso de fato aconteceu. Com as cotas, muitos estudantes racializados (e empobrecidos) conseguiram entrar. Mas quantos deles têm conseguido permanecer?

A inserção do público empobrecido não empobrece a universidade pública. Pelo contrário, a enriquece por trazer consigo inquietações outras. Mas um corpo pensante não é apenas um corpo que pensa; é um corpo que sente, inclusive, a fome. Muito se tem falado sobre descolonizar o pensamento. Penso que a gente precisa falar também sobre descolonizar a vida por meio do respeito.

Conheço pesquisadoras que, de tão desrespeitadas que já foram, perderam a vontade de seguir em frente com a carreira docente… com a pesquisa… com a vida. Mulheres que poderiam oxigenar a academia, mas, sufocadas pelo racismo, acabam ficando pelo caminho. O que acontece com essas mulheres, quando elas concluem a graduação, a pós-graduação? Para onde elas vão? E por que elas se vão?

Tenho cada vez mais refletido sobre como a suspensão de bolsas de pesquisa (espelho do corte dos investimentos na educação superior) vem afetando (e afastando) as mulheres racializadas das universidades. Sobre como a suspensão das bolsas torna ainda mais precária a vida das pesquisadoras em situação de vulnerabilidade social. Sobre como esse processo de recolonização se atualiza sempre de modo a excluir os descendentes de escravos (indígenas e negros) dos centros de produção e reprodução de conhecimento… de produção e reprodução de nossa História.

Não à toa que os cursos de ciências humanas e sociais são constantemente ameaçados de desinvestimento. Afinal, os neocolonizadores fazem o que podem para não ver a história da colonização ser reescrita e recontada pela ótica dos herdeiros dos colonizados, e por isso, asfixiam os cursos de Filosofia, História, Antropologia, Ciências Sociais, na tentativa de não aumentar o contingente de cientistas racializados.

Segundo Renato Noguera, doutor em filosofia e professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, o que está em jogo não deixa de ser uma disputa pela versão única da História, da Filosofia, dos modelos e práticas políticas frente à diversidade de perspectivas. Para derrotar, ainda que parcialmente, esse racismo epistemológico, explica Noguera, faz-se necessário um esforço por diversificar as leituras. A questão é: se diversificar as leituras é visto como um esforço, imagine diversificar as escritas… É por isso que a reelitização da universidade pode ser considerada uma das faces desse projeto neocolonizador. Afeito a estreitezas, a reelitização torna as pesquisas menos diversas, porque torna o grupo de pesquisadores menos diverso também.

Penso, recordando o livro de Ailton Krenak, intelectual do povo indígena Krenak, que a nossa grande tarefa talvez não seja adiar o fim desse mundo, onde o capital descapitaliza a vida, mas adiantar o início de um outro mundo possível, onde a vida esteja acima do capital. Penso, mas já não posso escrever sobre, pois já passa da hora de entrar no outro serviço.

Referências:

http://www.generonumero.media/editorial-o-labirinto-de-cristal-das-mulheres-na-ciencia/

https://www.geledes.org.br/afroperspectividade-por-uma-filosofia-que-descoloniza/

Meditações sobre feminismos, relações raciais e lutas antirracistas, da editora SOS Corpo [Livro de Rivane Arantes].

Ideias para adiar o fim do mundo, da editora Companhia das Letras [Livro de Ailton Krenak]

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Leia a coluna anterior: A poesia que combate

“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom, um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.

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