A artista e pesquisadora negra potiguar Rosy Nascimento fala sobre a Mostra Macambira, projeto voltado para dar visibilidade à produção audiovisual de mulheres
Na coluna desta semana, a artista e pesquisadora negra potiguar Rosy Nascimento reflete sobre a colonialidade do audiovisual brasileiro e possíveis caminhos para a sua desconstrução a partir da experiência da Mostra Macambira, projeto voltado para dar visibilidade à produção audiovisual de mulheres negras em uma perspectiva que problematiza criticamente a relação estrutural de racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado. Rosy Nascimento, em arte Fulô, é cineasta, escritora e graduanda em Comunicação Social – Audiovisual na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Constrói o coletivo de cinema negro potiguar Mulungu Audiovisual e acredita no cinema como um meio transformador para a garantia dos – e a reflexão sobre os – direitos das populações negras, indígenas e LGBTQIA+. Atuou na Coordenação Geral, Curadoria e Mediação dos debates na Mostra Macambira e faz cinema por necessidade.
Mostra Macambira – Uma janela de exibição feminista potiguar
Por Rosy Nascimento
Contextualização
Diante do cenário audiovisual brasileiro construído majoritariamente por narrativas coloniais, brancas, masculinas, cisgêneras e heteronormativas, como aponta as pesquisas da área realizadas pela ANCINE e GEMAA, e cujos dados indicam um número incipiente da presença feminina em funções criativas, sobretudo, de mulheres racializadas e gênero-dissidentes, muitas iniciativas emergentes protagonizadas por essas sujeitas têm surgido nos últimos anos em contraponto a tal estrutura excludente.
No contexto brasileiro, as mostras e festivais de cinema constituem-se como uma importante janela para o audiovisual autoral e não-comercial. No entanto, nas curadorias e júris é notável a inclinação por filmes que costumam seguir a um modelo industrial de produção. Consequentemente, filmes que possuem patrocínios públicos e privados costumam ser selecionados em detrimento de outros construídos por grupos historicamente marginalizados e que, pela dificuldade no acesso a políticas públicas federais e regionais, muitas vezes acabam desempenhando diversas funções criativas no processo de produção. Além do acúmulo de funções, costumeiramente, esses filmes são realizados em caráter colaborativo e não-oneroso para os profissionais envolvidos.
Tal postura curatorial tende a reproduzir um discurso oficial que baliza quem é aceitável ou não nos espaços de circulação e que, de modo geral, possuem raça, gênero, classe e sexualidade bem demarcadas. Igualmente, corrobora no imaginário social convicções ultrapassadas sobre aspectos que estruturam a sociedade contemporânea, como a crença no mito da democracia racial brasileira, por exemplo.
Unindo-se a iniciativas como FINCAR – Festival Internacional de Cinema de Realizadoras (PE), Mostra Competitiva de Cinema Negro Adélia Sampaio (DF), Mar de Realizadoras – Mulheres Ativismo Realização (BA), dentre outras, surge a Macambira – Mostra de Cinema de Realizadoras (RN) para auxiliar no âmbito das disputas de narrativas. Ela se caracteriza como uma janela de exibição feminista, no Rio Grande do Norte, de filmes dirigidos por cineastas brasileiras (cis, trans, travestis) e pessoas não-binárias.
A Mostra Macambira teve como ponto de partida a ferramenta teórico e metodológica da Interseccionalidade, “para pensar a inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado, e as articulações decorrentes daí, que imbricadas repetidas vezes colocam as mulheres negras mais expostas e vulneráveis aos trânsitos destas estruturas”, como pontua a doutoranda em estudos feministas Carla Akotirene, em entrevista ao portal Geledés.
Programação e Equipe
A Mostra contou com uma programação de três dias, que ocorreu de 10 a 12 de março, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), envolvendo atividades gratuitas e abertas ao público.
Dentre elas, houve o fomento da oficina “Afroficção” – resultado da pesquisa curatorial da cineasta sergipana Anti Ribeiro, na qual busca engatilhar processos artísticos que repensem o lugar da racialidade na construção ficcional – como também a projeção de filmes potiguares e nacionais em sessões temáticas, e a promoção de mesas de debates compostas por realizadoras e pesquisadoras potiguares que suscitaram reflexões sobre o campo do cinema e representações audiovisuais, e também provocações sobre a dinâmica das políticas públicas locais direcionadas às realizações e distribuições fílmicas.
A equipe da Macambira foi composta por Rosy Nascimento (Coordenação Geral, Curadoria, Mestre de Cerimônia e Mediação dos debates), Diana Coelho (Produção Executiva e Projeção), Pipa Dantas (Coordenação de Comunicação), Anti Ribeiro (Curadoria, Oficina e Debate), Renata Pyrrho (Curadoria), Allyne Paz (Assessoria de Imprensa), Alessandra Brandão (Assistência de Produção), Jane Gomes (Assistência de Produção) e Marina de Lourdes (Técnica de Som).
Durante o processo de desenvolvimento deste artigo foi aplicado um pequeno questionário quantitativo às integrantes da equipe afim levantar dados referentes as identidades de gênero, raça e sexualidade, com o intuito de refletir sobre os já mencionados marcadores sociais que se cruzam na interseccionalidade.
Em relação as identidades de gênero, a maioria se identificou enquanto mulheres cisgêneras (6), mas houve também a presença de pessoas trans não-binárias (2) e de travesti (1). Observando o aspecto de raça, houve uma presença significativa de autodeclaração negra (5), em detrimento de branca (2), parda (1) e indígena (1). Já no aspecto da sexualidade, a maioria se identificou enquanto bissexual (4), seguida de lésbica (2), heterossexual (1) e, por fim, houveram respostas que apontaram para sexualidade não-definida ou não-identificação com fôrmas de sexualidade (2).
Visões Curatoriais
Para a seleção dos filmes, foi aberta uma chamada nacional às realizadoras audiovisuais que rendeu o total de 215 submissões. Dentre elas, houveram algumas inscrições duplicadas e obras dirigidas exclusivamente por homens, que foram desconsideradas.
A curadoria da Mostra Macambira esteve engajada no movimento de desnaturalizar processos de violência e violação de direitos que determinados corpos são alvos historicamente. “A guerra é a colonização” – uma das frases proferidas em “Até o Fim do Mundo”, de Juma Gitirana Tapuya Marruá & Margarita Rodriguez Weweli-Lukana, sintetiza bem este processo.
Por outro lado, não se tratou de uma busca romantizada por “finais felizes”, ou gêneros focados inteiramente em denúncias de realidades demarcadas, reduzindo-se ao que é panfletário. Foi considerado as complexidades dos lugares de fala, dos temas abordados, dos discursos, identidades artísticas e contextos de produção. O objetivo foi a completa cisão com as estruturas gastas, que atura convenientemente subjetividades divergentes, até descartá-las novamente. A busca foi por contra-narrativas, visando a renovação dos olhares sobre as multifacetadas potências das mulheridades, muitas ainda buscando o seu lugar ao sol nos competitivos espaços de distribuição e exibição.
Sessões de Exibição
Durante o evento, foram exibidas 31 obras no formato de curta-metragem e um longa-metragem convidado, Ilha de Glenda Nicácio e Ary Rosa (BA, 96min, 2018), totalizando 32 filmes. Dessa maneira, oito sessões temáticas foram levantadas pela curadoria, sendo três pertencentes à Mostra Potiguar e cinco alinhadas à Mostra Nacional. É importante ressaltar que também houveram estreias de filmes durante a Macambira.
As sessões potiguares suscitadas foram: No palco, na reza, na labuta – filmes que retratam as mais diversas formas de trabalhar e intervir no mundo; Tremor – obras que valorizam a realização feminina dentro da estética de suspense no Rio Grande do Norte; e A voz que nos mantém – narrativas nas quais a voz é o ponto chave para continuar a existência.
Doze filmes integraram a Mostra Potiguar, abarcando os gêneros documentário, ficção, animação e experimental. O filme Dona Maria – A mão que move a cura pela folha, de Babi Freire (RN, 10’25’’, 2019), estreado na Mostra Macambira, se uniu a títulos como Performance, de Karina Moritzen (RN, 9’42’’, 2017), e
A Parteira, de Catarina Doolan (RN, 20′, 2019) com a apresentação de personagens complexas que existem no território potiguar e cujos ofícios estão “no palco, na reza, na labuta”. A destreza de narrativas direcionadas ao suspense também foi abordada, com enfoque para Paralise, de Julia Sena (RN, 3’46’’, 2019), que se caracterizou como a única animação potiguar inscrita na Mostra. O experimentalismo esteve presente no curta O sopro ligeiro do tempo, assinado por Gessyka Santos (RN, 1’12’’, 2020), como também no filme etnológico Cantador de morte, de Angela Pavan e Lisabete Coradine (RN, 9’56’’, 2020).
Já em relação à Mostra Nacional, as sessões originadas foram: Em guerra – onde os filmes são empunhados como armas em meio à batalha; Ninguém me tira daqui – filmes que articulam ideias sobre territórios (sejam geográficos, corporais, de identidade ou condição) e clamam pelo direito da permanência; Abraço – filmes que articulam afetos que não sufocam, que abraçam quando tudo está em ruínas; Malditas – reunião de obras em que não existem mulheres inofensivas; Distópica – aqui as realizadoras abrem espaço para pensar outros mundos, formas de vida que vão além da realidade, propondo distopias nas quais as mulheres são protagonistas.
Construíram a Mostra Nacional dezenove títulos, que também apresentaram reinvenções nas linguagens fílmicas, como aconteceu em À beira do planeta mainha soprou a gente, de Bruna Barros e Bruna Castro (BA, 13’18’’, 2020) – filme estreante, A felicidade delas, de Carol Rodrigues (SP, 14’, 2019), Carne, de Camila Kater (SP, 12’12’’, 2019), Drummondiana, de Yasmin Bidim (SP, 1’34’’, 2019), Nakua pewerewerekae jawabelia (Até o Fim do Mundo), de Juma Gitirana Tapuya Marruá e Margarita Rodriguez Weweli-Lukana (PE/RJ, 15’50”, 2019), Seremos Ouvidas, de Larissa Nepomuceno (PR, 12’55”, 2020), Noite Fria, de Priscila Nascimento (PE, 12’, 2020), e Thinya, de Lia Letícia (PE, 15′, 2019), sendo os dois últimos filmes também estreantes.
Mesas de Debates
Outro momento importante da Mostra Macambira foram as mesas de debates, que ocorreram ao fim de cada dia de exibição, articuladas para apresentar outros ângulos de discussão de quem está por trás das câmeras produzindo filmes, ou fomentando conhecimento científico voltado ao setor audiovisual local.
A primeira mesa foi O cinema não é cis, estruturada parra questionar a cisnormatividade do cinema, tendo a importante participação da cineasta Anti Ribeiro, que pontuou, dentre outras coisas, a necessidade de corpos LGBTQIA+ acessar a políticas públicas como forma de garantia da dignidade profissional, rompendo com as relações paternalistas também existentes no setor. Janaína Lima, pesquisadora da representação social de transexuais e travestis na mídia potiguar, também confirmada a integrar a mesa, não conseguiu participar por motivos de força maior.
Na mesa Quanto custa o cinedelas, as debatedoras Babi Freire (realizadora audiovisual), Maryland Brito (docente do IFRN – Cidade Alta) e Rebeca Souza (presidente da EmQuadro Filmes) pontuaram os desafios de realização audiovisual, no contexto local, devido ao difícil acesso na captação de recursos públicos, contribuindo para a permanência de um cinema potiguar independente, que repele classes e sujeitos menos favorecidos, e pela dinâmica do acúmulo de funções, também se constitui como excludente e adoecedor.
A última mesa denominada Pretagonismo nas telas foi construída a partir das considerações da atriz Alessandra Augusta, e pelas pesquisadoras Denise Carvalho e Stéphanie Moreira, na qual construíram um quilombo de informações e pertencimento a partir da circularidade de análises suscitadas pelo longa-metragem “Ilha” (BA, 96min, 2018, dirigido por Glenda Nicácio e Ary Rosa.
Desdobramentos
A primeira edição da Mostra Macambira teve patrocínio do Fundo de Incentivo à Cultura (FIC 2018), lançado pela Prefeitura do Natal através da Fundação Cultural Capitania das Artes, e realização do coletivo de cinema negro potiguar, Mulungu Audiovisual, em parceria com a Salobra Filmes. Contou igualmente com o apoio do Departamento de Comunicação Social (DECOM/UFRN), Departamento de Educação Física (DEF/UFRN), Departamento de Ciências Sociais Aplicadas (CCSA/UFRN), Cinemateca Potiguar (IFRN – Cidade Alta) e da empresa júnior EmQuadro Filmes.
A Macambira intenciona seguir ocupando espaços do estado com exibições gratuitas e acessíveis, alcançando cada vez mais públicos de diferentes contextos geográficos, promovendo importantes debates sobre feminismos e cinemas, levantando também as pautas que versam sobre raça, classe, identidades de gêneros e sexualidades
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Leia a coluna anterior: Corpo, capitalismo e covid-19: os estudos de gênero para a compreensão da pandemia
“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom, um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.
Rosy Nascimento
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