O atual mundo de vigilância em tempo real coloca em xeque a liberdade, a privacidade e a própria democracia
(Homero Costa)
A qualidade da democracia é um dos temas relevantes da política nas primeiras décadas deste século. Um dos aspectos centrais diz respeito à manipulação de eleições com o uso, não apenas de mentiras – que sempre existiu – como especialmente da utilização de sofisticada tecnologia.
Com o seu uso sistemático e eficiente, com informações subtraídas de milhões de usuários, em especial do Facebook, Google e Twitter que tem se tornado instrumentos importantes da política, influenciando decisivamente eleições e assim colocando em xeque a própria democracia, que tem nas eleições um dos seus instrumentos de legitimidade. Daí a importância de se analisar a forma como se usam o mundo digital para influenciar a opinião pública e as eleições.
Embora, hoje, uma das grandes preocupações seja que discursos e práticas que afetam direitos humanos, como políticas anti-imigração, fechamento de fronteiras e endurecimento de medidas de segurança, possam não apenas ganhar força com a disseminação do coronavírus, como se manter após a crise. A questão central nesse caso é que, diante de uma emergência de saúde pública que atingem os países, decisões autoritárias ameacem a democracia. Para citar apenas dois casos: Na Hungria, o primeiro-ministro Viktor Orbán aprovou no parlamento dia 30 de março de 2020, por 137 contra 52 a lei que prorroga o estado de emergência por tempo indeterminado, com poderes para suspender leis e governar por decretos. Da mesma forma em Israel, no qual o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que deveria ir a julgamento sob acusações de suborno, fraude e quebra de confiança, fechou tribunais e ameaçou suspender as atividades do Parlamento.
Em relação ao período anterior à pandemia do coronavírus , e que poderá ser a tônica das eleições subsequentes, é possível afirmar que o uso de tecnologias e das redes sociais terão papel central nos processos eleitorais.
No livro Manipulados: como a Cambridge Analytica e o Facebook invadiram a privacidade de milhões e botaram a democracia em xeque (Editora Harper Collins, 2019) Brittany Kaiser analisa a forma como o uso do Facebook foi fundamental nas eleições dos Estados Unidos em novembro de 2016. A autora trabalhou na Cambridge Analytica por três anos e meio e conhecendo a empresa, e suas estratégias por dentro, resolveu tornar público o seu conhecimento, através de debates, palestras e neste livro para mostrar como a empresa operava e sobre os perigos que o Big Data representa “para que, da próxima vez, os eleitores de ambos os lados, estivessem cientes de tudo o que está em jogo na guerra de informações que a nossa democracia está encarando”.
Quanto ao Big Data e seu uso em eleições, no dia 5 de fevereiro de 2017, foi publicado no site outras palavras o artigo Big Data: Toda democracia será manipulada? por Mikael Krogerus e Hannes Grassegger. Inicialmente os autores se referem a duas pessoas que tiveram grande importância para a vitória do Brexit e de Donald Trump: Michael Kosinski especialista em psicometria (um sub-ramo ou área da psicologia baseada em dados que tem como foco medir os traços psicológicos dos indivíduos com o uso de modelos da matemática e estatística) e Alexander James Ashburner Nix, proprietário da Cambridge Analytica, que fez a campanha online de ambos. Segundo os autores, um possibilitou a revolução digital (kosinski), outro a executou (Alexandre Nix) e um terceiro (Donald Trump), beneficiou-se dela (depois, outros também se beneficiaram com o uso de dados e estratégias semelhantes).
O que se pretende mostrar, entre outros aspectos relevantes é o que está por trás do Big Data (…) “Em essência, tudo o que fazemos, seja on ou offline, deixa traços digitais. Cada compra que fazemos com nossos cartões, cada busca que fazemos no Google, cada movimento que fazemos com nosso celular no bolso, cada ‘like’ é armazenada. Especialmente cada ‘curtida’”. O objetivo é mostrar como uma empresa de Big Data, a Cambridge Analytica, usou os dados de milhões pessoas para vencer eleições. E para isso, o uso da psicometria foi fundamental. Como informam os autores, na década de 1980 “ duas equipes de psicólogos desenvolveram um modelo que buscava avaliar os seres humanos com base em cinco traços de personalidade, conhecidos como os “Cinco Grandes” , que tornaram-se a técnica padrão da psicometria: abertura (o quão aberto você está para novas experiências?), conscenciosidade (quão perfeccionista você é?), extroversão (quão sociável?), afabilidade (quão atencioso e cooperativo?) e neuroticidade (você se aborrece facilmente?) e que com base nessas dimensões podia-se fazer uma avaliação relativamente precisa do tipo de pessoa, que incluíam suas necessidades e medos, e como ela tende a se comportar”.
Naquele momento o problema era a coleta de dados, porque necessitava do preenchimento de um questionário, mas mudou totalmente com o surgimento e o desenvolvimento da Internet e depois com os dados disponibilizados (voluntariamente) pelas pessoas no Facebook. A importância de Kosinski é que ele foi fazer PhD na Universidade de Cambridge no Centro de Psicometria, e com um amigo criou um aplicativo para Facebook (MyPersonality) que possibilitou aos usuários preencher diversos questionários psicométricos e , com base na avaliação, recebiam um “perfil de personalidade” e ao criarem “esperavam que apenas algumas dezenas de amigos e colegas preenchessem os questionários”. No entanto, para a surpresa deles “centenas, milhares e depois milhões de pessoas revelaram suas mais profundas convicções. E assim eles possuíam o maior conjunto de dados com pontuações psicométricas abrangentes com perfis do Facebook jamais coletados”.
E o modelo foi se refinando: Em 2012, eles mostraram que “com base numa média de 68 ‘curtidas’ no Facebook, era possível descobrir a cor da pele de um usuário (com 95% de probabilidade de acerto), sua orientação sexual (88%) e sua filiação partidária, religiosa, assim como uso de álcool, fumo ou droga”. Tudo podia ser determinado usando as informações dos usuários, como, por exemplo, se os pais eram divorciados ou não.
Essencialmente, o que Kosinki criou foi um mecanismo de busca de pessoas com base nas informações que as pessoas forneciam e, posteriormente, passou a incluir também o smartphone “um vasto questionário psicológico que estamos preenchendo constantemente, tanto consciente quanto inconscientemente”.
Esse modelo, que não tinha por objetivo o seu uso em eleições, foi descoberto e utilizado pela empresa Laboratórios de Comunicação Estratégica, sediada em Londres, que oferece marketing baseado em modelos psicológicos. Um de seus focos é justamente a de influenciar eleições e em 2013, criou uma subsidiária, a Cambridge Analytica, contratada para fazer a campanha de Donald Trump em 2016 e de acordo com seu proprietário, citado no artigo de Mikael Krogerus e Hannes Grassegger, o sucesso de marketing de sua empresa “baseia-se numa combinação de três elementos: ciência comportamental usando o Modelo OCEAN, análise de Big Data e publicidade segmentada. Publicidade segmentada são comerciais personalizados, alinhados o mais precisamente possível à personalidade de um consumidor individual”. Para isso a empresa compra dados pessoais de um conjunto de fontes diferentes, dados importantes para compor o perfil do usuário como registros de imóveis, dados de compras, de assinatura e/ou leitura de revistas, igrejas que freqüenta etc., e “agrega esses dados com os registros eleitorais e dados online e calcula um perfil Big Five de personalidade (…) assim, as pegadas digitais tornam-se pessoas reais, com medos, necessidades, interesses e endereços residenciais”.
E isso foi feito nos Estados Unidos com dados do Facebook “traçando o perfil de personalidade de todos os adultos nos Estados Unidos da América – 220 milhões de pessoa”. Dados como idade, endereço, interesses, personalidade e inclinação política etc., assim como também foram criadas estratégias para manter os eleitores de Hilary Clinton, do Partido Democrata e adversária de Donald Trump, longe das urnas, com uma profusão de fake news (usadas por Trump antes, durante e depois das eleições). Outra estratégia, que se mostrou eficaz, foi a de enviar uma mensagem diferente para cada eleitor, classificados psicometricamente (detectado, por exemplo, que a segurança era um dos itens relevantes para determinadas pessoas, dirigia a esse público a defesa do direito à posse de armas e assim por diante). O fato é que tiveram êxito e os dados das pessoas retiradas do Facebook foi uma das armas mais poderosas da campanha eleitoral.
Um dos personagens importantes nesse processo foi Steve Bannon, membro do conselho da Cambridge Analytica e ex-presidente executivo do jornal online de direita Breitbart News e um dos principais conselheiros e estrategista da campanha de Donald Trump.
No artigo Steve Bannon e as eleições fake publicado no jornal Le Monde Diplomatique no dia 23 de outubro de 2018, Artur Sinaque Bez escreve que “nos Estados Unidos em 2016 foram 50 milhões de perfis invadidos, a partir dos quais se localizaram as mensagens com potencial de engajamento de pessoas e grupos em prol de um posicionamento político de extrema-direita (…) e que “conduziu as parcelas menos engajadas do eleitorado a revoltarem-se com boatos que modificam os resultados de uma eleição ‘democrática’”.
Bannon foi um dos consultores na campanha eleitoral de Jair Bolsonaro em 2018, mas em vez do Facebook, no Brasil o Whastapp teve papel mais relevante. Uma matéria publicada no dia 18 de outubro de 2019 no Jornal Folha de S. Paulo, mostrou como foram utilizados perfis falsos para influenciar os resultados das eleições. Empresários compraram (irregularmente) pacotes massivos de envio de mensagens contrárias ao PT e com conteúdos ofensivos (e mentirosos) a Fernando Haddad. Segundo a matéria, as empresas compraram de companhias especializadas, um serviço chamado “disparos em massa” de mensagens no Whatsapp, com compra e acesso a uma extensa base de dados, segmentado por região geográfica, renda, etc. que possibilitou o uso sistemático e organizado de mensagens para um público específico para influenciar (e decidir) o seu voto.
Outro livro importante sobre o tema é Democracia manipulada: a explicação por detrás das fake news, do Bretix em Inglaterra, Donald Trump nos Estados Unidos, Macron em França, ou do Movimento Cinco Estrelas em Itália de Martin Moore (Editora Self, Carcavelos, Portugal, 2019). O autor busca compreender como o Facebook, Google e Twitter foram usados por empresas de consultoria política que influenciam decisivamente eleições, como nos casos citados pelo autor (Reino Unido, Inglaterra, França e Itália). Um mundo de vigilância em tempo real, com acesso a dados pessoais que são analisados com o uso de sofisticada tecnologia e que não apenas distorcem o processo eleitoral e seus resultados, como coloca em xeque a própria democracia, a liberdade e a privacidade.
A questão é: o que se precisa fazer para salvar a democracia, enfrentar as fake news, manipulações, hackes, milícias digitais e o controle monopólico das informações? Hoje, como vimos, a tecnologia pode manipular a vontade do eleitor, usando uma linguagem habilmente formulada e que se viraliza nas redes sociais. Mas não se trata apenas de manipular o resultado eleitoral, num mundo dominado por gigantescas plataformas tecnológicas transnacionais, seu uso pode corroer a democracia. Governos autoritários podem não apenas serem eleitos usando dessas estratégias, como podem usá-las para reforçar seu poder, daí a importância de refletirmos sobre as formas de como somos representados, como as eleições podem ser manipuladas, portanto minando a legitimidade dos processos democráticos, mas como diz Moore, precisamos de uma esfera digital menos centralizada, de espaços cívicos digitais e serviços públicos que não se baseiem no rastreamento de dados pessoais e , fundamentalmente de uma democracia digital cujo ponto de partida seja centrar-se no cidadão, garantindo seus direitos, inclusive à privacidade.
Nesse sentido, além da preservação dos direitos, hoje ameaçados em alguns países em função da pandemia do coronavírus, ampliar os espaços democráticos, evitar que empresas usem impunemente pesquisas e tecnologias, com acesso a dados de milhões de pessoas para influenciar e decidir eleições, enfim, criar uma democracia digital parece ser um dos importantes desafios que teremos pela frente.
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Homero de Oliveira Costa é Professor Titular (Ciência Política) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Homero de Oliveira Costa
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