Em defesa do Estado democrático de direito Artigos

sexta-feira, 13 março 2020

Embora as criticas ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal sejam justificadas, essas instituições são fundamentais para a democracia

(Homero Costa)

O artigo 1º da Constituição Federal de 1988 (dos Princípios fundamentais) diz que a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político e no Parágrafo único que “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Trata-se de uma forma de Estado caracterizado pela separação dos poderes estatais, pela garantia e respeito das liberdades civis, direitos humanos e proteção jurídica contra o arbítrio.

Hoje o que se constata é que esse Estado democrático de direito está ameaçado com as constantes afrontas aos seus princípios assegurados na Constituição. Há a tentação autoritária da hipertrofia de um dos poderes, o Executivo e assim contra um dos princípios fundamentais do Estado de Direito, que é o da separação e independência dos poderes.

Em evento organizado pelo MST em Brasília no dia 7 de março de 2020, a ex-presidenta Dilma Rousseff afirmou que “vivemos sob uma democracia ameaçada” e se referiu ao casamento entre o avanço neoliberal e o autoritarismo no país. Para ela “neoliberalismo e o neofascismo são irmãos siameses”

Um ano de governo, o que tem se observado no país é um processo de destruição das instituições, um presidente que usa com frequência uma retórica de confronto contra seus críticos e adversários, com muitos episódios que se contrapõe ao decoro do cargo, com falas de desrespeito a chefes de Estado de outros países, de hostilização a governadores de oposição, a mulheres, negros, indígenas, insultos a imprensa, além das reversões de políticas públicas sociais (Para ficar apenas num exemplo, em janeiro de 2020, em relação à concessão de novos benefícios do Bolsa Família, pelos dados disponibilizados pelo Ministério da Cidadania, a Região Nordeste, que concentra 36,8% das famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza recebeu apenas 3% enquanto Sul e Sudeste ficaram com 75% das novas concessões).

O professor João Cezar de Castro Rocha, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), em entrevista publicada no Jornal Opção no dia 9 de março de 2020 se refere ao que chama de uma guerra cultural (bolsonarista) cujo objetivo é o da destruição das instituições e a eliminação simbólica do inimigo interno que, segundo ele, são pontas de lança do projeto autoritário do presidente da República. Salienta a necessidade de compreender essa guerra cultural na sua própria dinâmica, fonte e origem e afirma que o conteúdo desse modelo está ligado a uma concepção revisionista da ditadura militar, de uma concepção oriunda da doutrina de segurança nacional, cuja essência é o de eliminação do inimigo interno, ou seja, qualquer adversário que é transformado em inimigo: “Se você fizer o trabalho mínimo de assistir a alguns vídeos de intelectuais bolsonaristas, o verbo dominante é eliminar. E o substantivo dominante é limpeza. É um vocabulário retirado diretamente do golpe militar de 1964”.

Essencialmente, para ele, é um projeto em curso, de eliminação, destruição das instituições ligadas ao meio ambiente, cidadania e cultura e “ponta de lança” de um projeto autoritário cuja finalidade é destruir as instituições para estabelecer um governo de ação direta entre massas e o presidente.

As críticas ao Supremo Tribunal Federal e ao Congresso Nacional se enquadram também nessa perspectiva. Não se trata de aperfeiçoar, mas de fechar, destruir estas instituições. As criticas a elas podem até serem justificadas. Oscar Vilhena Vieira no livro A batalha dos poderes (Editora Companhia das Letras, 2018) se refere à exacerbada concentração de poderes nas mãos do STF, oriundo da Constituição de 1988. Ele chama o STF de supremocracia que é “o poder sem precedentes conferido ao Supremo Tribunal Federal para dar a última palavra sobre as decisões tomadas pelos demais poderes em relação a um extenso elenco de temas políticos, econômicos, morais e sociais, inclusive quando essas decisões forem veiculadas por emendas à Constituição”. Na sua perspectiva ele é consequência da desconfiança na política e da hiperconstitucionalização da vida brasileira e alerta que o seu protagonismo, sua constante interferência no debate público e a ausência de uma postura rígida em relação a conflitos de interesse têm contribuído para a erosão da sua autoridade. Um dos aspectos relevantes nesse sentido são a ingerência em decisões do parlamento, nos partidos e demais poderes.

Da mesma forma há muitos estudos e pesquisas sobre o Congresso Nacional, que analisam suas distorções, a inconsistência programática dos partidos e a ausência de democracia interna, a sub-representação das mulheres, a desconexão entre representantes e representados etc.

Mas nada disso justifica seu fechamento. Ao contrário. Tanto o Congresso Nacional como o Supremo Tribunal Federal são de fundamental importância para a democracia. O Congresso Nacional, por exemplo, é hoje majoritariamente conservador e tem aprovado a maioria das propostas do governo, como a reforma da Previdência e, mais recentemente o veto em relação ao orçamento impositivo.  Em que tem impedido o governo de governar?

O que existe é a ausência de diálogo por parte de Executivo com os outros poderes. O que se constata é que em seu primeiro ano de mandato, o presidente da República alimentou muitas dúvidas a respeito do cumprimento da Constituição, envolvendo-se em seguidos conflitos, inclusive com o parlamento.

Nesse sentido, quando se convoca manifestações contra o STF e o Congresso Nacional é louvável iniciativa de partidos como PT, PSB, Psol, PC do B, Rede, PV e Unidade Popular que se reuniram no dia 3 de março e lançaram uma nota denunciando a atuação do planalto na desestabilização das instituições. No dia 5 de março, foi a vez da Frente Brasil Popular e a Frente Brasil Sem Medo se reunir com o objetivo de articular ações conjuntas com os partidos em atos de defesa da democracia nos dias 8, 14 e 18 deste mês.

Mas não se pode nem se deve esgotar com esses atos. É preciso vigilância e mobilização permanente em defesa do Estado democrático de Direito num cenário, interno e externo de degradação da democracia. Larry Diamond, professor de ciência política e sociologia da Universidade de Stanford, argumenta no livro The Spirit of Democracy: The Struggle to Build Free Societies Throughout the World (O Espírito da Democracia: A Luta para Construir Sociedades Livres em Todo o Mundo) que estamos num período de recessão democrática, ou seja, uma onda global de retrocessos. Para Steven Levitisky e Daniel Ziblatt em Como as democracias morrem (Editora Zahar, 2018) a investida contra a democracia começa lentamente, e as iniciativas para subvertê-la costumam ter um verniz de legalidade. No último capítulo (Salvando a democracia) argumenta sobre a importância de salvar a democracia, enquanto ainda é tempo. Por isso são importantes iniciativas como a do Pacto pela Democracia, uma organização que tem a participação de mais de 130 entidades da sociedade civil e que elaborou uma Plataforma de Ação Conjunta em defesa da construção democrática no Brasil. O Pacto é “um espaço plural, apartidário e aberto a cidadãos, organizações e também atores políticos que compartilhem do compromisso de resgatar e aprofundar práticas e valores democráticos diante dos inúmeros desafios enfrentados ao longo dos últimos anos no país”.

Como parte de suas atividades, foi elaborado o Mapa Democracia Sim que informa sobre iniciativas e organizações em defesa do revigoramento da democracia no País: são mais de 300 mostrando que “apesar do ambiente de degradação da política no país, a sociedade civil segue atuando em defesa da democracia”.

Nesse clima de ódio, intolerância e violência, com o País dividido e polarizado política e ideologicamente, o arbítrio não pode e nem deve vencer. Buscar unidade em defesa da democracia, do Estado democrático de direito, é fundamental, ou seja, há a urgente necessidade de uma articulação de convergência do campo democrático. Como disse Oscar Vilhena Vieira “a sobrevivência da Constituição depende de muitos fatores, entre os quais o compromisso dos diversos setores da sociedade, das lideranças políticas e dos atores institucionais com as regras do jogo democrático e seus pressupostos”. Muitos avaliam os riscos de golpe e a constatação de que as instituições estão sendo progressivamente apropriadas pelo fascismo e nesse sentido o grande desafio hoje é o que fazer para impedir a continuidade do processo de destruição das instituições democráticas, antes que seja tarde demais.

Referências

Jornal Opção: Entrevista João Cesar de Castro

Mapa Democracia Sim

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A política do ódio

Homero de Oliveira Costa é Professor Titular (Ciência Política) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Homero de Oliveira Costa

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