Reflexão acerca do reconhecimento do saber acadêmico questiona a baixa repercussão da bibliografia produzida por mulheres racializadas de países não-europeus
A partir dessa edição a coluna Diversidades será realizada por um coletivo formado por pesquisadores e professores ligados ao desCom, cuja descrição segue na assinatura do texto, no final dessa página. A primeira autora é Andrielle Mendes, doutoranda em Estudos da Mídia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPgEM-UFRN).
Quero voltar à discussão que iniciei em 16 de setembro de 2019 acerca das narrativas de resistência e reexistência por considerar o tempo oportuno. Afinal, acabamos de passar pelas mobilizações midiáticas em torno do Dia Internacional da(s) Mulher(es) (08 de março) e quando eu voltar a publicar certamente já teremos passado pelas mobilizações midiáticas em torno do Dia do Índio[1] (19 de abril). O texto que você lê é uma primeira tentativa – de minha parte – em juntar esses dois assuntos e os transformar num só: a visibilidade das mulheres indígenas.
Acho honesto confessar que comecei a estudar a temática muito recentemente, pois embora eu me reconheça mulher desde o nascimento, só passei a me conhecer indígena há menos de um ano. Sigo em busca de minhas raízes, fincadas até onde consegui descobrir, em território ocupado pelo povo Potiguara, na época da invasão do Brasil, mas não é sobre isso que quero falar agora. Estou interessada neste momento em saber que livros você está lendo, que temas, quais autores. Se algum dia já fez a lista dos autores mais lidos, tipo a lista dos mais vendidos do Festival do Livro de Paraty (FLIP).
Eu fiz esse exercício pela primeira vez em 2018, quando Renata Pyrrho, pesquisadora negra brasileira do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Mídia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, me provocou a observar o gênero dos autores nas referências bibliográficas dos cursos e disciplinas. E voltei a fazer o mesmo exercício em 2019, quando li Safiya Umoja Noble – professora negra afro-americana associada da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) e membro do corpo docente visitante da Annenberg School of Communication da Universidade do Sul da Califórnia – elucidar porque não olhar para a cor é perigoso.
Fiquei intrigada ao perceber que eu, enquanto mulher indiodescendente do Nordeste do Brasil, praticamente só lia homens, brancos, europeus e norte-americanos. Lembro agora que não fiquei intrigada. Fiquei incomodada mesmo. E decidi investigar o porquê disso tudo. O que eu descobri revelo daqui a pouco, porque antes preciso dizer que ler textos de homens, brancos, europeus não é um problema. O problema é não ler também mulheres racializadas de países que estão fora da Europa.
O problema é não perguntar por que não compramos os livros que elas escrevem nem sequer lemos o que escrevem. Esse problema, de tanto me incomodar, virou o meu tema de pesquisa de doutorado. Eu nunca havia problematizado isso. Até aquele dia… A aula era sobre Cultura, Sociedade e Mídia. O professor apresentava a bibliografia sugerida: quatro autores alemães, um austríaco, um checo. Poucos brasileiros. Nenhuma mulher negra. Nenhuma indígena…
Uma das alunas sugeria que o professor havia excluído de propósito as mulheres da bibliografia; o professor do programa de pesquisas dizia que não, não tinha sido proposital. O restante da turma respirava sem fazer barulho. Lá pras tantas, o professor disse que a aluna teria problemas na disciplina, se continuasse a insinuar esse tipo de coisa. A aluna saiu da sala, sozinha, subiu um lance de escadas, e cancelou a matrícula, temendo represálias. Curiosamente, um dos temas abordados no primeiro módulo do curso foi o perigo da naturalização – e não problematização – de práticas sociais, mas a pesquisadora não pôde participar da discussão, pois já não estava mais lá.
Fiquei paralisada. Mas no dia seguinte resolvi me mover. Enviei uma mensagem para as alunas da turma, combinando de incorporar autoras em todas as nossas apresentações para mostrar que mulheres, em especial, as racializadas e não europeias, também produzem ciência. Nunca mais parei de fazer isso. Ali eu entendi que se eu não me movesse, todas, de um modo ou de outro, seríamos atropeladas.
“A academia não é um espaço neutro nem tampouco simplesmente um espaço de conhecimento e sabedoria, de ciência e erudição. É também um espaço de v-i-o-l-ê-n-c-i-a”, expõe Grada Kilomba. “Como acadêmica, por exemplo, é comum dizerem que meu trabalho acerca do racismo cotidiano é muito interessante, porém não muito científico. Tal observação ilustra a ordem colonial na qual intelectuais negras/os (mas também indígenas) residem: ‘Você tem uma perspectiva demasiado subjetiva’, ‘muito pessoal’; ‘muito emocional’; ‘muito específica’; ‘Esses são fatos objetivos?’”, descreve Grada, ao listar frases que ouviu enquanto estudava Psicologia Clínica e Psicanálise, no Instituto de Psicologia Aplicada (ISPA), em Portugal. Não à toa, Grada pensou em desistir do curso. Entendo demais… eu também pensei o mesmo.
Por bastante tempo, ouvi frases que desqualificavam a minha escrita, o meu tema de pesquisa, a minha forma de trabalhar: “você não escreve academicamente”; “você escreve jornalisticamente”; “você precisa refinar a sua escrita, já disse isso muitas vezes”; “feministas são raivosas”; “homens não gostam de mulheres inteligentes”; “existe um ‘contrato’ e neste contrato orientandos só devem produzir com os seus orientadores”; “Meus orientandos não podem ser roubados, estão acorrentados à minha mesa”, “Andrielle é preguiçosa, não trabalha!”; “Você não pode sonhar, pois não é doutora!”. Até que entendi que já tinha ouvido por tempo demais. E larguei… não o doutorado, mas a orientação.
Tais comentários, explica Grada Kilomba, funcionam como uma máscara que silencia nossas vozes assim que falamos. Eles permitem que o sujeito branco posicione nossos discursos de volta nas margens, como conhecimento desviante, enquanto seus discursos se conservam no centro, como a norma. “Quando elas/eles falam é científico, quando nós falamos é acientífico. Universal/específico; objetivo/subjetivo; neutro/pessoal; racional/emocional; imparcial/parcial; elas/eles têm fatos/nós temos opiniões; elas/eles têm conhecimento/ nós temos experiências”. Estas não são simples categorizações semânticas: “elas possuem uma dimensão de poder que mantém posições hierárquicas e preservam a supremacia branca”, aponta a escritora.
“Qual conhecimento está sendo reconhecido como tal? E qual conhecimento não é? Qual conhecimento tem feito parte das agendas acadêmicas? E qual conhecimento não? De quem é esse conhecimento? Quem é reconhecida/o como alguém que possui conhecimento? E quem não é? Quem pode ensinar conhecimento? E quem não pode? Quem está no centro? E quem permanece fora, nas margens?” são perguntas que Grada nos provoca a fazer.
Quando uma mulher negra ou indígena entra para a universidade, ela ajuda a alargar o campo da visão da ciência ao olhar para temas que sequer eram notados, como por exemplo, o apagamento das mulheres, em especial das mulheres racializadas, nas bibliografias, pois os ‘ex-objetos’, quando entram no espaço privilegiado de produção do saber científico sob a égide da racionalidade ocidental moderna e de expressão da branquitude, tendem a ameaçar territórios historicamente demarcados dentro do campo das ciências sociais e humanas, trazer elementos novos de análise e novas disputas de poder acadêmico, como explica Nilma Gomes.
Não à toa seus saberes, métodos, práticas e linguagens são colocados sob suspeita por aqueles que insistem na possibilidade de produção de uma ciência neutra, descolada dos sujeitos que a produzem e desconectada da realidade social e política do país e das demandas colocadas pelos movimentos sociais e diferentes setores da sociedade, como ressalta Nilma.
A ciência//a dominante, centrada na Europa, esteve, por muito tempo, a serviço da legitimação da discriminação, da subjugação e da colonização de determinados indivíduos e grupos. Foi transformada em instrumento de invisibilização e silenciamento. Demorou-se muito até que se percebesse que a ciência não era neutra, mas pautada por objetivos ora excludentes ora inclusivos.
O perigo da história única
Chimamanda Adichie, escritora conhecida por denunciar os perigos da história única, recomendou, certa vez, que se a cultura não nos inclui, devemos trabalhar por uma que nos inclua. Penso que o mesmo pode ser feito com a ciência. Se não é possível, em um primeiro momento, descontruir os muros, talvez seja possível abrir brechas neles. Abrir espaço para histórias alternativas, dissonantes, dissidentes, insurgentes vividas pelos corpos a partir dos corpos talvez seja um bom começo.
Quero ajudar a construir uma universidade que se importe mais com as consequências do racismo, do sexismo, do extermínio do pensamento do povo negro e da juventude negra, da homofobia, lesbofobia, transfobia, da intolerância religiosa, do apagamento da cultura do povo indígena e genocídio do povo indígena e de todas as violências materiais ou simbólicas praticadas contra qualquer grupo, mas, sobretudo, contra aqueles que foram historicamente “marginalizados, espoliados e excluídos” no dizer de Graça Graúna, escritora filha do povo Potiguara.
Penso neste momento nos povos indígenas “excluídos na história há mais de 500 anos”, como afirma Graça, e em como a universidade é um espaço fundamental na vida do indígena, assim como o saber do indígena é fundamental para a universidade, segundo Márcia Wayna Kambeba, escritora filha do povo Omágua-Kambeba. Daí vem a importância de o indígena que entra na universidade compreender que ele tem que dar um retorno para o seu povo, já que a luta maior não é de quem está na cidade, mas de quem permanece na aldeia resistindo contra as invasões e o desmatamento, enfatiza Márcia.
Penso nos pesquisadores indígenas nas universidades. Penso em como a luta na univerCidade está interligada à luta na aldeia. Penso “nos mais de 400 mil indígenas que ressurgiram – como em um sonho – dos cantões das cidades como índios desaldeados, como revelou o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em pesquisa feita em 2000”, cujo ressurgimento Eliane Potiguara, filha do povo Potiguara e primeira mulher indígena a publicar um texto literário no Brasil, narra no livro Metade Cara, Metade Máscara. Penso na profecia de Eliane, segundo a qual, “surgirão muitos mais, neste século, os indiodescendentes, com caras e histórias de índios e índias, ignorados pela ciência que ignora certos valores, pois esse contingente indígena nunca mais terá vergonha nem medo de assumir sua identidade”.
Penso em como a literatura indígena brasileira contemporânea (mas também a ciência indígena brasileira contemporânea) pode contribuir com o aparecimento das histórias invisíveis ao se inserir numa dinâmica ampla de ativismo, militância e engajamento de minorias historicamente marginalizadas e invisibilizadas da sociedade, como analisa Julie Dorrico, escritora filha do povo Macuxi.
Penso na própria Julie e no projeto #Leiamulheresindígenas, através do qual a pesquisadora apresenta livros escritos por autoras indígenas brasileiras. Penso na lista disponibilizada por ela. Penso na minha lista de antes. Na de agora. Minha estante agora tem uma prateleira reservada só para livros de autoria indígena. A maioria deles escrito por mulheres dos povos Potiguara, Omágua-Kambeba, Puri e Maraguá. É muito pouco. Eu sei. Há pelo menos 305 povos indígenas no Brasil, segundo o Instituto Socioambiental. Mas foi a forma que eu encontrei de religar a luta na univerCidade com a luta na aldeia.
Formas de apoio
Há muitas formas de apoiar os povos indígenas. Ler os seus livros e divulgá-los é só uma delas. Outra maneira é apoiar financeiramente as suas iniciativas. O Movimento Indígena no Rio Grande do Norte, por exemplo, está em campanha para arrecadar recursos e garantir a participação de suas lideranças no Acampamento Terra Livre, em Brasília, no mês de abril. Organizado pela Articulação dos povos indígenas do Brasil (APIB) com o apoio da Mobilização Nacional Indígena, o ATL é a maior mobilização indígena do país e, em sua 16ª edição, se consolida como uma das agendas mais importantes para a cidadania global.
As lideranças do Movimento no RN enxergam no evento uma oportunidade para “mostrar que estamos vivos, lutando, cobrando, ocupando; que precisamos de direitos, assistência. É de extrema importância que os povos indígenas do RN consigam chegar até o ATL. Precisamos estar presentes, ocupar e somar com os parentes. Segundo o IBGE, o RN é o estado com menor número de autodeclaração indígena do Brasil. Ocupando e levando nossos parentes até o ATL, teremos a chance de mostrar que existimos, estamos vivos, presentes e articulados”, resume Rodrigo dos Palmares, um dos articuladores da comunicação dos povos indígenas do estado.
Segundo Rodrigo, durante o ATL os povos indígenas participam de marchas, atos públicos, audiências com autoridades dos três poderes, debates, palestras, grupos de discussão e atividades culturais para cobrar, lutar, reivindicar e resistir. “Nós, povos indígenas do RN, estamos nos organizando para participar do ATL com uma delegação de 50 indígenas para unir forças junto aos nossos parentes indígenas de todo o território brasileiro. Precisamos de apoio para o transporte de Natal – Brasília (ATL 2019) – Natal, deslocamento dos indígenas das aldeias para Natal – aceitamos caronas – colchonetes, alimentação e barracas de camping. São 4 dias de percurso (2 dias para chegar em Brasília e 2 dias para voltar para Natal) mais 4 dias de atividade em Brasília, totalizando 8 dias de viagem”, explica o articulador da campanha.
Com terras em processo de demarcação, o Rio Grande do Norte contabiliza 13 comunidades indígenas politicamente articuladas – Apodi (Etnia Tapuia Paiacú); Caboclos (Etnia Potiguara); Assentamento Marajó (Etnia Potiguara); Amarelão (Etnia Potiguara); Serrote de São Bento (Etnia Potiguara); Açucena (Etnia Potiguara); Assentamento Santa Terezinha (Etnia Potiguara); Cachoeira/Nova Descoberta (Etnia Potiguara); Tapará (Etnia Tapuia); Catu (Etnia Potiguara); Sagi Trabanda (Etnia Potiguara); Jacú (Etnia Potiguara); Ladeira Grande (Etnia Tapuia) e Lagoa do Mato (Etnia Tapuia) -, além de uma população de indígenas urbanos crescente. “Foram inúmeras migrações, famílias separadas, bocas silenciadas, línguas cortadas. Trabalho escravo, exploratório, nações diluídas para hoje termos 13 comunidades politicamente conscientes, organizadas e orgulhosas de sermos indígenas”, ressalta Tayse Campos, liderança indígena do Território Mendonças do Amarelão.
Interessados (as) em apoiar a iniciativa podem contribuir com qualquer valor. Para doar, basta acessar o link da campanha Indígenas do RN no ATL 2020: https://benfeitoria.com/indigenarn ou entrar em contato com:
Cacique Luiz Katu: (84) 9122-6024
Cacique Tayse Campos (84) 9 92208750
Cacique Dioclécio Potiguara: (84) 9 94494462
Rodrigo dos Palmares: (84) 9 81041025
Juão Nyn: (11) 94805-7456
Livros consultados:
– Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano, de Grada Kilomba.
– Algorithms of oppression, de Safiya Umoja Noble.
– Intelectuais negros e produção de conhecimento: algumas reflexões sobre a realidade brasileira (no livro Epistemologias do Sul), de Nilma Lino Gomes.
– O perigo de uma história única, de Chimamanda Ngozi Adichie.
– Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil, de Graça Graúna.
– Metade Cara, Metade Máscara, de Eliane Potiguara.
– Literatura indígena brasileira contemporânea: criação, crítica e recepção, organizado por Julie Dorrico em colaboração com outros pesquisadores.
– Ay kakyri tama (eu moro na cidade), de Márcia Wayna Kambeba.
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Leia a coluna anterior: Heroínas, mulheres, negras
“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom, um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.
Andrielle Cristina Moura Mendes Guilherme
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